São Paulo, terça-feira, 08 de março de 2005

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Refletir e agir

IDELI SALVATTI

"Refletir é transgredir a ordem do superficial"
(Lya Luft)

"Parabéns ; o emprego é seu."
"Maravilha! Quando começo?"
"Quando quiser. Só tem uma coisa: você vai ganhar menos que ela."
"Mas é a mesma função!"
"É pegar ou largar. A fila lá fora está grande..."
Imagine você, homem, nessa situação. Que diferença existe entre você e ela? Você é até mais qualificado. Por que, então, ganhar menos? Mas se "a fila lá fora está grande..."


Que ordem é essa em que as mulheres têm uma média de tempo de estudo superior à dos homens e recebem salários menores?


Difícil imaginar? Às vezes é bom inverter uma situação para termos uma noção mais exata dela. Se você consegue se ver na pele de quem sofre com as injustiças, reflita, como propõe Lya Luft. Afinal, que ordem é essa em que as mulheres têm uma média de tempo de estudo superior à dos homens (7%, contra 6,8%) e recebem salários menores em todos os níveis de escolaridade?
Pois é exatamente o que revela o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). Em 2003, os homens com até três anos de estudo recebiam em média um salário de R$ 343,30. As mulheres, R$ 211. Homens com grau de instrução de oito a dez anos de estudo tinham salário médio de R$ 631,70. Já as mulheres, de R$ 350,60.
Mas os homens são chefes de família... Cuidado com a superficialidade! O mesmo estudo do IBGE mostra que o número de famílias brasileiras com mulheres ocupando o lugar de chefe da casa cresceu quase 30% entre 1993 e 2003, passando de 22,3% para 28,8%.
Por essas e por outras, seria bastante pedagógico para os homens colocarem-se por algum momento no lugar das mulheres. Duvido que algum achasse graça em qualquer piadinha se fosse alvo desse processo de dominação econômica e cultural, construído ao longo da história, no qual diferenças salariais são apenas a ponta do iceberg. Esse momento pode até ser a data oficial em que comemoramos o dia Internacional da Mulher, neste 8 de março. Mas, para reverter em mudanças significativas, o tempo dessa consciência não deveria ser apenas um lapso alimentado por uma data e pela quase obrigatoriedade dos discursos politicamente corretos, ainda que fugazes.
Ah, se a cada palavra de reconhecimento correspondesse uma ação no sentido da mudança...
Essa esperança na consciência alheia, aliás, remete a uma outra reflexão: as mudanças significativas, sejam na ideologia dominante, sejam na prática cotidiana, dependem essencialmente de nós, mulheres. Os principais avanços e conquistas não vieram sem luta. E, sem mudanças estruturais, as injustiças podem até diminuir, mas não cessarão.
Miremo-nos no exemplo daquelas mulheres que em 1988 foram em caravanas a Brasília para garantir que nossos direitos estivessem inscritos na Constituição do Brasil; daquelas brasileiras presentes em conferências no Chile, Costa Rica, Estados Unidos, Viena, Cairo e, em 1995, na histórica Conferência de Beijing, que disse um sonoro não a todas as formas de violência e discriminação, reafirmando a necessidade de reconhecimento pelos direitos da mulher como direitos humanos.
Se "refletir é transgredir a ordem do superficial", agir pode e deve transgredir a ordem profundamente enraizada da discriminação contra a mulher. É nesse sentido que se inscreve a 49ª sessão da Comissão Jurídica e Social da Mulher, da Organização das Nações Unidas, que acontece em Nova York com o objetivo de avaliar os dez anos correntes do encontro em Beijing, consolidar os avanços e indicar perspectivas para o futuro. É nessa direção que está o compromisso do governo federal de criar o Plano Nacional de Políticas para as Mulheres, reafirmado com a criação das secretarias especiais de Políticas para as Mulheres e Promoção da Igualdade Racial.
O Estado assume, assim, a responsabilidade de implementar políticas públicas que tenham como foco as mulheres, a consolidação da cidadania e a igualdade de gênero. O Ano Nacional da Mulher, criado em 2004, também foi fundamental nas ações do Congresso Nacional em defesa das mulheres, com destaque para a aprovação de questões como a criminalização da violência doméstica e a proteção de crianças e adolescentes contra a exploração sexual.
Ainda há muito a fazer, é certo, a começar por conquistarmos uma maior representação política, para que não fiquemos na dependência apenas daqueles que, eventualmente, consigam se colocar no nosso lugar.
Ocupemos o nosso lugar! Vencer preconceitos que, de tão fortes, afetam até a nós mesmas não é uma tarefa fácil. Mas quando a vida se apresentou fácil para nós? Então, vamos continuar gerando filhos e sonhos. Estou certa de que eles nascerão e crescerão juntos, reais, gêmeos de um novo tempo.

Ideli Salvatti, 52, professora licenciada em física pela Universidade Federal do Paraná, senadora pelo PT-SC, é vice-líder do governo no Senado.
@ - ideli@senado.gov.br



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