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Tudo é Brasil
CARLOS HEITOR CONY
Rio de Janeiro - Pode-se acusar a sociedade brasileira de tudo, menos de
não ter simetria em seus movimentos
internos. Agora mesmo, vivemos um
instante antológico dessa simetria: o
caso dos precatórios e a barbárie de
Diadema.
Na aparência, um nada tem a ver
com o outro. Banqueiros, autoridades
estaduais e municipais, deputados e
senadores, em princípio, não se misturam com policiais e traficantes. Vivem
e atuam nas respectivas esferas. Mas
têm em comum o mesmo ambiente, o
mesmo caldo sóciopolítico. Daí a facilidade com que prevaricam ou exorbitam.
Tudo é Brasil. Ou como queria Manuel Bandeira: tudo é tão Brasil. Não
creio que seja apenas a garantia de
impunidade que leva ao crime ou à
improbidade. Há uma componente
perversa na alma nacional que muita
gente pensa que é esperteza ou malandragem, mas no fundo é um vácuo
moral. E é comum a todas as classes.
Em criança, minha primeira amiga
foi a filha de uma cozinheira lá de casa, negrinha bonita e levada, chamada Olívia. Aos domingos, vinha visitar-nos um amigo do pai, advogado
de posses. Depois do ajantarado lia o
volumoso ``Jornal do Commercio'' na
rede, dava um cochilo e, sem razão
aparente, chamava Olívia e dizia:
``Negrinha, se não fosse a polícia...''
Até hoje não sei o que ele pretendia.
Se matar a negrinha ou violentá-la.
Fosse o que fosse, ele só se comportava
dentro do padrão socialmente correto
por causa da polícia -isso num tempo em que, pelo menos em tese, havia
polícia.
A turma que se envolveu com os precatórios e os policiais de Diadema fazem o mesmo raciocínio.
Autoridades (incluindo um ex-presidente da República), congressistas,
banqueiros, intermediários e lobistas
sabem que tudo é permitido desde que
ninguém saiba.
Os policiais pensam e atuam do mesmo modo. São rigorosamente iguais
por dentro e por fora. Muda o cenário.
Mas o vocabulário, sobretudo na hora
das explicações, é o mesmo.
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