São Paulo, terça, 8 de abril de 1997.

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Tudo é Brasil

CARLOS HEITOR CONY
Rio de Janeiro - Pode-se acusar a sociedade brasileira de tudo, menos de não ter simetria em seus movimentos internos. Agora mesmo, vivemos um instante antológico dessa simetria: o caso dos precatórios e a barbárie de Diadema.
Na aparência, um nada tem a ver com o outro. Banqueiros, autoridades estaduais e municipais, deputados e senadores, em princípio, não se misturam com policiais e traficantes. Vivem e atuam nas respectivas esferas. Mas têm em comum o mesmo ambiente, o mesmo caldo sóciopolítico. Daí a facilidade com que prevaricam ou exorbitam.
Tudo é Brasil. Ou como queria Manuel Bandeira: tudo é tão Brasil. Não creio que seja apenas a garantia de impunidade que leva ao crime ou à improbidade. Há uma componente perversa na alma nacional que muita gente pensa que é esperteza ou malandragem, mas no fundo é um vácuo moral. E é comum a todas as classes.
Em criança, minha primeira amiga foi a filha de uma cozinheira lá de casa, negrinha bonita e levada, chamada Olívia. Aos domingos, vinha visitar-nos um amigo do pai, advogado de posses. Depois do ajantarado lia o volumoso ``Jornal do Commercio'' na rede, dava um cochilo e, sem razão aparente, chamava Olívia e dizia: ``Negrinha, se não fosse a polícia...''
Até hoje não sei o que ele pretendia. Se matar a negrinha ou violentá-la. Fosse o que fosse, ele só se comportava dentro do padrão socialmente correto por causa da polícia -isso num tempo em que, pelo menos em tese, havia polícia.
A turma que se envolveu com os precatórios e os policiais de Diadema fazem o mesmo raciocínio.
Autoridades (incluindo um ex-presidente da República), congressistas, banqueiros, intermediários e lobistas sabem que tudo é permitido desde que ninguém saiba.
Os policiais pensam e atuam do mesmo modo. São rigorosamente iguais por dentro e por fora. Muda o cenário. Mas o vocabulário, sobretudo na hora das explicações, é o mesmo.

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