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São Paulo, terça-feira, 08 de abril de 2003

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Silêncio e censura, inimigos da liberdade

ROBERTO ROMANO

Com o fragor das batalhas em Bagdá, assistimos a uma outra luta, agora na América do Norte. Refiro-me à campanha oficial daquele país contra a imprensa livre. Vejamos o exemplo de Peter Arnett, profissional que teve ilusões de dizer o que pensava sobre os erros estratégicos americanos.
Demitido, lemos as desculpas melancólicas que ele mesmo apresentou ao complexo político e militar que orienta sua terra. Com esse fato, um limite espiritual foi superado. Os jornalistas autênticos que operam nos EUA sabem que o liberalismo foi suspenso. Calar ou exercer a propaganda governamental é a opção permitida à imprensa. Algumas resistências à censura foram esboçadas e a tentativa de Arnett é prova disso. Mas a profissão jornalística recebeu um ferimento grave.
Janio de Freitas, na Folha, em 1º/04/ 03, apresentou um requisitório contra o silêncio de pessoas e instituições na guerra do Iraque. O mutismo define as tiranias. A primeira coisa que buscam os autocratas é a cumplicidade das vítimas. Elias Canetti lembra o imperador Domiciano, cujo desejo era aterrorizar os líderes de Roma. Ele os convidou para uma refeição e, nela, os alimentos servidos eram idênticos aos ofertados pelas almas dos mortos. Enquanto os "convivas" guardaram um silêncio de pavor, Domiciano recordou falecimentos e massacres. Alternaram-se, nos convidados, o medo diante da morte e a esperança de sobrevida. Os líderes deixaram-se dominar no pêndulo daquelas emoções.
Comentário de Canetti: "O terror incessante no qual Domiciano manteve seus hóspedes fez com que eles emudecessem. Somente ele falava, e falava de mortes e massacres". Mas, na vida pública, o silêncio é menos traumático do que a fala obrigatória das vítimas.
Na Santa Inquisição, silentes quando "apenas" os cristãos novos eram torturados e postos em fogueiras, os mudos da época sentiam chamas ardentes se aproximarem de seu corpo. Quando pegos nas mesmas armadilhas sobre as quais se calaram, foram coagidos a confessar muitas faltas, na maioria inexistentes. A igreja tem essa mancha no seu pretérito.


O mutismo define as tiranias. A primeira coisa que buscam os autocratas é a cumplicidade das vítimas


Também nos modernos movimentos políticos deu-se a passagem do silêncio às palavras enunciadas para confirmar os poderosos. Caso típico são os julgamentos de Moscou sob Stálin. Os fiéis ao programa revolucionário silenciaram quando os dirigentes distorceram teses e ordenaram perseguições aos inimigos do partido. Os militantes calaram porque o mesmo partido era a sua vida. Eles e a máquina política seriam uma só carne. Os emudecidos nos primeiros tempos tirânicos tornaram-se réus, confessaram faltas inexistentes, destruíram sua personalidade em favor do líder. Espantosa e triste comunhão entre os "culpados" de Moscou e os seus algozes: Claude Lefort analisa o fenômeno em livro não traduzido para a nossa língua, "Un Homme en Trop".
Mas não apenas a URSS impôs o silêncio e a fala forçada. Na França, na Inglaterra, nos EUA ocorreram estupros de almas, confissões e pedidos de perdão por supostos "erros" cometidos. Na Argélia, os franceses sabiam que seu governo torturava os árabes. Poucos tiveram a coragem de Sartre para denunciar a "superior civilização" francesa. Muitos acadêmicos e jornalistas assumiram um tom contrito, desculpando-se não diante dos torturados, mas dos torturadores. Eles tentaram apagar até a simples notícia das atrocidades.
No macarthismo, espetáculo similar surgiu diante do mundo.
Essas práticas pavimentaram as políticas do Ocidente, onde a regra é o silêncio, o medo, o aviltamento da consciência. As exceções brilham. O caso de Peter Arnett é notável. Ele ousou dizer coisas escondidas a milhões de americanos. Despedido, as suas desculpas foram lamentáveis. Mudando nomes e lugares, temos nesse caso a realidade dos processos moscovitas. Neles, o réu tinha no partido a sua razão de ser, e devia confessar traições imaginárias para garantir o "seu" Estado. Arnett e a América deveriam ser um bloco. Quebrado o monolito, restou ao jornalista a humilhação de indicar o seu pensamento como servo da censura, o que é proibido pela Constituição americana.
Na URSS de ontem e nos EUA de agora, a imprensa sofreu e sofre com as tenazes da razão de Estado. Arnett testemunha a violência contra a liberdade de pensamento. Depois desse fato, e das atrocidades cometidas pelos governos, com o silêncio acovardado dos acadêmicos e da mídia, é certo dizer com Bertrand Russell: "Um exame sem parcialidades da conduta internacional de hoje permite concluir que os parâmetros de comportamento mantidos pelo nazismo e fascismo tornaram-se geralmente aceitos ("The Doctrine of Extermination')".
Isso permite, nas guerras de agora, a violência contra civis em escala infernal. A liberdade de imprensa, mais do que nunca na história, deve ser conquistada e garantida. Enquanto restar uma palavra impressa que não resulte da censura, o silêncio cúmplice ainda não será a norma absoluta. E haverá uma possibilidade de convívio entre os humanos.

Roberto Romano, 57, filósofo, é professor titular de ética e filosofia política na Unicamp.


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