São Paulo, terça-feira, 08 de abril de 2003 |
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TENDÊNCIAS/DEBATES Silêncio e censura, inimigos da liberdade
ROBERTO ROMANO
Também nos modernos movimentos políticos deu-se a passagem do silêncio às palavras enunciadas para confirmar os poderosos. Caso típico são os julgamentos de Moscou sob Stálin. Os fiéis ao programa revolucionário silenciaram quando os dirigentes distorceram teses e ordenaram perseguições aos inimigos do partido. Os militantes calaram porque o mesmo partido era a sua vida. Eles e a máquina política seriam uma só carne. Os emudecidos nos primeiros tempos tirânicos tornaram-se réus, confessaram faltas inexistentes, destruíram sua personalidade em favor do líder. Espantosa e triste comunhão entre os "culpados" de Moscou e os seus algozes: Claude Lefort analisa o fenômeno em livro não traduzido para a nossa língua, "Un Homme en Trop". Mas não apenas a URSS impôs o silêncio e a fala forçada. Na França, na Inglaterra, nos EUA ocorreram estupros de almas, confissões e pedidos de perdão por supostos "erros" cometidos. Na Argélia, os franceses sabiam que seu governo torturava os árabes. Poucos tiveram a coragem de Sartre para denunciar a "superior civilização" francesa. Muitos acadêmicos e jornalistas assumiram um tom contrito, desculpando-se não diante dos torturados, mas dos torturadores. Eles tentaram apagar até a simples notícia das atrocidades. No macarthismo, espetáculo similar surgiu diante do mundo. Essas práticas pavimentaram as políticas do Ocidente, onde a regra é o silêncio, o medo, o aviltamento da consciência. As exceções brilham. O caso de Peter Arnett é notável. Ele ousou dizer coisas escondidas a milhões de americanos. Despedido, as suas desculpas foram lamentáveis. Mudando nomes e lugares, temos nesse caso a realidade dos processos moscovitas. Neles, o réu tinha no partido a sua razão de ser, e devia confessar traições imaginárias para garantir o "seu" Estado. Arnett e a América deveriam ser um bloco. Quebrado o monolito, restou ao jornalista a humilhação de indicar o seu pensamento como servo da censura, o que é proibido pela Constituição americana. Na URSS de ontem e nos EUA de agora, a imprensa sofreu e sofre com as tenazes da razão de Estado. Arnett testemunha a violência contra a liberdade de pensamento. Depois desse fato, e das atrocidades cometidas pelos governos, com o silêncio acovardado dos acadêmicos e da mídia, é certo dizer com Bertrand Russell: "Um exame sem parcialidades da conduta internacional de hoje permite concluir que os parâmetros de comportamento mantidos pelo nazismo e fascismo tornaram-se geralmente aceitos ("The Doctrine of Extermination')". Isso permite, nas guerras de agora, a violência contra civis em escala infernal. A liberdade de imprensa, mais do que nunca na história, deve ser conquistada e garantida. Enquanto restar uma palavra impressa que não resulte da censura, o silêncio cúmplice ainda não será a norma absoluta. E haverá uma possibilidade de convívio entre os humanos. Roberto Romano, 57, filósofo, é professor titular de ética e filosofia política na Unicamp. Texto Anterior: Frases Próximo Texto: Carlos de Meira Mattos: Duas estratégias em confronto Índice |
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