São Paulo, quinta-feira, 08 de abril de 2004

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OTAVIO FRIAS FILHO

Religião do capitalismo

Numa época, como a atual, em que a economia de mercado está reconquistando a metade outrora perdida do mundo e crescem ao mesmo tempo as novas seitas evangélicas, é mais do que oportuna -para usar o clichê das resenhas de livros- a reedição do ensaio "A Ética Protestante e o "Espírito" do Capitalismo", de Max Weber (1864-1920). Trata-se do texto mais influente do sociólogo alemão.
A edição comporta não apenas glossário de termos, lista de expressões de tradução equívoca e as copiosas notas do autor, mas contém os acréscimos que Weber introduziu no texto original de 1904 quando autorizou sua publicação na forma de livro, em 1920. Entre outras intervenções mais importantes, a segunda versão suprimiu as aspas em "espírito" do capitalismo.
A tese do ensaio é conhecida e dela podemos constatar evidências ainda hoje: a religião protestante estimulou o desenvolvimento do capitalismo nos países do Norte. Mas afirmá-lo é reduzir a complexidade do pensamento de Weber a uma fórmula, enquanto o cenário do livro são os meandros e interações entre as duas esferas, a religiosa e a econômica.
Embora Weber admitisse que a economia desempenha papel determinante nas sociedades, ele ressaltava o intrincado das idas e vindas entre a estrutura econômica e a superestrutura das idéias, para usar a terminologia marxista. Seu ensaio funcionou como um contraponto importante ao mecanicismo marxista, então em voga, que subordinava todas as instâncias da vida social ao primado da economia.
Weber procura mostrar como a valorização protestante da ascese e da frugalidade estimulou a poupança, motor da acumulação capitalista. Ao banir a intermediação mágica e eclesiástica entre Deus e suas criaturas, a Reforma isolou o indivíduo numa solidão em que ele só pode contar com seus próprios recursos de trabalho e parcimônia -não existe milagre, Deus não atende nossas súplicas.
Por outro lado, a crença protestante de que Deus já definiu quem será salvo -oposta à salvação pelas obras e pelo arrependimento, própria dos católicos- coloca o problema de como identificar os merecedores da graça divina. O trabalho produtivo e a riqueza que não é dissipada, mas reinvestida, passam a ser vistos como sinais exteriores dessa predestinação para a graça.
A questão que o livro suscita é saber se o atual surto de expansão neoprotestante pode atuar, nos países atrasados, como simulacro da revolução protestante na Europa e nos Estados Unidos dos séculos 17 e 18, sendo capaz de gerar conseqüências análogas. Argumenta-se que o misticismo supersticioso dos neo-evangélicos, dados a rituais de exorcismo, por exemplo, vai na direção contrária ao espírito da Reforma, que era racionalista.
Mas é bem possível que a histeria dos cultos corresponda a uma necessidade de superfície, a tendência contemporânea a fazer da vida um espetáculo performático (como já ocorre na política, na publicidade etc.). Pois a pregação dos neoprotestantes, ao combater os vícios e incentivar uma disciplina de trabalho, joga água no mesmo moinho da vocação aquisitiva, da poupança e da acumulação.


Otavio Frias Filho escreve às quintas-feiras nesta coluna.


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