São Paulo, quinta-feira, 08 de abril de 2004

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CARLOS HEITOR CONY

Abril cruel

RIO DE JANEIRO - Para T. S. Eliot abril era um mês cruel. Para o Stedile, em 2004 teremos um abril vermelho. O Brasil foi descoberto, segundo a marchinha de Lamartine Babo, num dia 21 de abril, três meses depois do Carnaval. Al Jolson cantou "April Showers". Dá para desconfiar que cada um tem o abril que merece e eu tenho o meu. Não sei em que ano -e desconfio que este abril ficou melhor assim, intacto no tempo, como aquele quarto do poeta no beco da Lapa.
Era Semana Santa e fazia um calor que o Nelson Rodrigues diria que rachava catedrais. Numa praia quase deserta de Cabo Frio, passáramos o dia comendo frutos do mar com caipirinhas de vodca, ali pelas cinco horas, com o sol ainda forte, caímos duros na esteira de praia e cozinhamos as caipirinhas, os camarões grelhados, as patas de siri e a carne branca das lagostas com gosto de mar.
Acordamos e a noite ia alta. Ninguém na praia, praia imensa, iluminada por uma lua obscena, lua cheia, lua de Sexta-Feira Santa, o calendário das festas religiosas parece que é baseado nas fases da lua. Para mim, o dia terminara. Mergulhara naquela água azul, tomara umas e outras, a moça ao meu lado sabia tirar aquela carne nacarada das patas dos siris que comemos com as mãos, lambuzando dedos e bocas, que lambuzados ficaram com outras iguarias.
Pensei em voltar para a cabana que alugara, mas a moça de repente tirou o maiô e ficou nua. Correu para o mar, que ali, junto à praia, era feito só de espuma, espuma prateada, refletindo o luar.
As ondas não eram fortes, mas suficientes para levantar a moça diversas vezes, ela então brilhava com seu corpo branco e cheio de lua, peixe inesperado, de uma só escama, que surgia e desaparecia nas espumas e vinha rolando, rolando, quando a água voltava para o mar ela ficava estendida a meus pés, toda feita de espumas que ainda ferviam.
Abril é mês cruel. Antes não fora tão cruel assim.


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