São Paulo, sábado, 08 de maio de 2004

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TENDÊNCIAS/DEBATES

A reforma agrária baseada na distribuição de terras é eficiente?

SIM

Os males da estrutura anacrônica

PLINIO ARRUDA SAMPAIO

Em outros tempos, qualquer pessoa minimamente informada sobre os problemas do meio rural simplesmente não entenderia a pergunta acima formulada. Na literatura especializada, a redistribuição dos direitos de acesso à terra sempre constituiu a essência mesma da reforma agrária.
Mas estamos vivendo tempos estranhos, de modo que se torna necessário demonstrar o óbvio: não há reforma agrária sem uma distribuição de terras que afete significativamente a estrutura agrária do país. Basta perguntar: por que motivo o Estado decide promover uma reforma agrária? Na literatura clássica, a resposta é: porque esse Estado defronta-se com uma questão agrária.
A "questão agrária" tem sido tema de volumosa literatura desde os fins do século 19, e a discussão sobre ela sempre girou em torno dos entraves que uma estrutura agrária anacrônica cria para a penetração da modernidade no campo.
Por estrutura agrária sempre se entendeu o conjunto das relações econômicas, sociais e políticas derivadas da forma de acesso à terra. Quando a terra é monopolizada por uma classe de proprietários rurais, as relações que eles estabelecem com a população rural provocam baixa utilização das terras, exploração extensiva do solo, rigidez da oferta de produtos agrícolas, pobreza da população rural, submissão social e política do campesinato.
Não se pode, em um quadro desse tipo, construir uma economia agrícola dinâmica e um Estado verdadeiramente democrático; e não há como alterar esse quadro somente com medidas de política agrícola. É fato exaustivamente documentado que a estrutura agrária concentrada gera, por meio das suas viciadas relações econômicas, sociais e políticas, mecanismos que anulam automaticamente os efeitos dos estímulos oferecidos pelas políticas agrícolas.
A necessidade da intervenção direta do Estado na estrutura fundiária surge dessa rigidez estrutural. Só com uma operação "cirúrgica" consegue-se romper o monopólio da terra -passo prévio ao surgimento de relações econômicas, sociais e políticas novas, propícias à implantação da racionalidade econômica e dos direitos democráticos no meio rural. A partir da política de modernização tecnológica iniciada pelos governos militares, os economistas conservadores passaram a negar os efeitos nocivos da concentração da terra, pois, sem distribuí-la, até concentrando-a ainda mais, a modernização tecnológica do campo possibilitara ao setor agrícola acompanhar a evolução da demanda, aumentar as exportações e melhorar a produtividade da agricultura. Concluíram daí que a hora da reforma agrária havia passado.
O que esse discurso ideológico omite é o preço dessa "modernização" -preço altíssimo em termos de desintegração de sistemas produtivos, empobrecimento de milhões de famílias rurais, emigração maciça da população do campo para as cidades, degradação ambiental, aumento da dependência tecnológica, vulnerabilidade alimentar, agravamento dos conflitos rurais, prepotência de fazendeiros sobre os trabalhadores rurais, desrespeito aos direitos dos indígenas sobre suas terras.
Esse conjunto de problemas compõe a "questão agrária" brasileira atual, e nenhum deles poderá ser resolvido enquanto a atual estrutura agrária não for substancialmente alterada, sendo certo também que, enquanto tais problemas não forem resolvidos, o Brasil continuará uma economia subdesenvolvida e sua democracia, uma ficção jurídica.
Para superar o círculo vicioso do atraso e da pobreza, decorrente em última instância da absurda concentração da propriedade da terra (43% das terras agricultáveis estão em mãos de 1,7% dos proprietários), a equipe encarregada de formular o 2º PNRA (2º Plano Nacional de Reforma Agrária) estabeleceu a meta de assentar, em quatro anos, 1 milhão de famílias em 36 milhões de ha de terras desapropriadas das grandes fazendas improdutivas. Essa meta seria suficiente para provocar os desequilíbrios virtuosos que caracterizam um processo real de reforma agrária.
A redução da meta para 520 mil famílias, determinada pelo governo, não provoca uma distribuição de terras de magnitude suficiente para provocar tais desequilíbrios. Portanto ainda é preciso lutar pela reforma agrária, como o MST e tantos outros movimentos populares vêm fazendo.
Admitir uma reforma agrária sem distribuição de terras constitui uma forma de confundir a opinião pública, quando não se quer alterar a situação estrutural do campo. Sempre se pode dar a uma política agrícola o nome de reforma agrária, mas não se pode, com esse expediente, resolver os graves problemas que só uma verdadeira reforma agrária resolveria.


Plinio Arruda Sampaio, 73, advogado e economista, é presidente da Abra (Associação Brasileira de Reforma Agrária). Foi deputado federal pelo PT-SP (1985-91) e consultor da FAO (Organização das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação).


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