São Paulo, sábado, 08 de maio de 2004

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TENDÊNCIAS/DEBATES

A reforma agrária baseada na distribuição de terras é eficiente?

NÃO

Reinventar a reforma agrária

XICO GRAZIANO

O distributivismo agrário encerrou seu ciclo. Tornou-se uma proposta distante de sua época, uma idéia fora do lugar. Formulado há 40 anos, o modelo de reforma agrária do Brasil está, claramente, superado. Por quê? Porque no passado, há 50 anos, imperava a terra ociosa, os famosos latifúndios dos coronéis do sertão ou das oligarquias da capital. O país era eminentemente rural e a tecnologia de produção incipiente. A mecanização das lavouras se iniciou só na década de 70.
Naquela época, bastava vontade de trabalhar e uma boa enxada para prosperar no campo. Os mercados eram predominantemente locais, as agroindústrias pequenas. Mandava o armazém e as mercadorias se vendiam a granel. Hoje tudo mudou. Surgiram as redes de supermercados e suas gôndolas, que atendem a donas-de-casa exigentes, atrás de padronização e qualidade. A sofisticação da elite se incorporou na classe popular. Consumidores seletivos direcionam os canais de comercialização agrícola. Metrópoles são abastecidas ao mesmo tempo em que o país assume a liderança mundial nas exportações do agronegócio. Isso só é possível porque a agropecuária se modernizou.
Nesse fabuloso e rápido processo, os latifúndios se transformaram em empresas rurais. A terra, antes ociosa, agora bate recordes de produtividade. Açúcar, café, fumo, soja, carne bovina, frango, suco de laranja, papel e celulose -em vários setores os concorrentes internacionais tomam poeira do caipira nacional. Gente simples, porém capaz, domina a tecnologia de ponta e dá show de competência na lide rural.
Cadê o sem-terra? Mudou para a cidade. Expulso pela mecanização ou mandado embora devido ao temor da legislação trabalhista, o trabalhador rural se refugiou no emprego, primeiro, da construção civil. Atraído pela indústria, buscou qualidade na vida urbana. Assim se inverteu a pirâmide populacional do país. Nas regiões de agricultura desenvolvida, em todas elas, inexiste desemprego. Pelo contrário, há escassez de mão-de-obra, desde colhedores de laranja em São Paulo até tratoristas na Bahia. Goste-se ou não, o Brasil cresceu, urbanizou-se e virou potência agrícola mundial sem necessitar da reforma agrária. A tese histórica afirmava que, sem eliminar o latifúndio, não haveria progresso no campo. Era verdade. Quem, entretanto, realizou a façanha não foi a esquerda, mas o capitalismo.
A distribuição continua concentrada, porém a terra está produtiva. Melhor ainda, gerando milhões de empregos, dentro das fazendas e fora de suas porteiras, nas cadeias produtivas que dela se originam. Sem o pasto do boi não haveria tantas churrascarias nem seus garçons. Do algodão no Mato Grosso se originam as vendedoras de jeans do shopping center carioca.
O que restou para o distributivismo da terra? Infelizmente, a desilusão urbana, provocada pelo tremendo desemprego. Tendo perdido seu significado produtivo, propõe-se a reforma agrária como válvula de escape das tensões urbanas. Assim, o MST, que nasceu movimento social, transformou-se em fábrica de sem-terra, marca registrada de sua rígida e fortíssima organização.
Gente boa, miserável, mistura-se aos oportunistas e malandros para ganhar um lote nos assentamentos. Iludidos com promessas de futuro fácil, massas são manipuladas e treinadas para invadir fazendas e erguer lonas pretas. A classe média se apieda, enquanto a burguesia, assustada com a marginalidade, apóia veladamente: faça o favor de seguir para bem longe daqui! Assim, a favela mudou de lugar -dos barracos na periferia para os acampamentos rurais.
Imaginar que um pobre alienado, sem aptidão nem cultura adequada, possa se tornar um agricultor de sucesso no mundo da tecnologia e dos mercados competitivos significa raciocinar com o absurdo. Para alguns, a ideologia explica; para outros, impera a ingenuidade.
Abstraindo os picaretas da reforma agrária, que engrossam as invasões tencionando realizar um pequeno negócio imobiliário, os demais, bem-intencionados, dificilmente sobreviverão na lide rural. Eles não têm preparo suficiente para enfrentar as barreiras impostas pela moderna forma de produzir no campo. Basta ver o fracasso dos assentamentos dos últimos 15 anos.
A maior prova da dificuldade em se manter agricultor no mundo atual está nos 4,5 milhões de pequenos e médios produtores rurais, que lutam para sobreviver. Peguem o alerta da França: seus 2 milhões de agricultores reduziram-se, em meio século, a somente 500 mil. Mesmo com tanto protecionismo.
Aqui reside o fulcro da questão agrária recente: nos trabalhadores "com terra", esses milhões de agricultores tradicionais, netos, bisnetos, descendentes dos camponeses de outrora. Eles não invadem nada nem criam confusão. Querem prosperar, isso sim. E estão esquecidos, porque são pacíficos.
É um tremendo equívoco querer realizar, no presente, a reforma agrária que não foi esquecida no passado. Quem quer mesmo enfrentar a miséria, que troque a receita velha pelo remédio novo. A tarefa cabe à esquerda. Há que reinventar a reforma agrária no Brasil.


Francisco Graziano Neto, o Xico Graziano, 51, engenheiro agrônomo, é consultor de empresas e presidente da ONG AgroBrasil. Foi presidente do Incra (1995) e secretário da Agricultura do Estado de São Paulo (1996-98).


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