São Paulo, domingo, 8 de junho de 1997.



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França, retorno à esquerda

A eleição traduziu uma vontade de punir a direita, mais que a adesão a um (vago) programa de esquerda


IGNACIO RAMONET

Que lições extrair das recentes eleições legislativas francesas? Em primeiro lugar, que não se pode mais governar desprezando os cidadãos, tentando enganá-los quanto ao essencial e achando que um eleitorado é uma mera abstração, que técnicos podem equacionar e manipular à vontade.
Ao dissolver, por pura comodidade, a Assembléia Nacional e ao antecipar as eleições legislativas (previstas normalmente para março de 1998), o presidente Jacques Chirac tentou uma manobra política de rara inabilidade. E fracassou de forma lamentável.
Poderia ter sido diferente? Os eleitores não esqueceram que, eleito em maio de 1995 com base num discurso antiliberal (anti-"pensamento único") e num projeto de forte coloração populista (corrigir a "fratura social"), Chirac renegara espetacularmente suas promessas, mal transcorridos cinco meses, e adotara um programa ultraliberal, atingindo fiscalmente os mais humildes e deixando se expandirem o desemprego e a pobreza.
Essa traição foi fortemente sentida pelos cidadãos, que, reagindo ao anúncio do plano de austeridade de outubro de 1995, participariam em massa, em novembro e dezembro de 1995, do mais poderoso movimento social que a França conhecera desde maio de 1968. A impopularidade do governo de Alain Juppé e do próprio presidente não mais decresceria.
Nesse clima, como se surpreender com a recusa dos eleitores de conceder à mesma equipe carta branca para cinco anos? É, aliás, uma lição de governabilidade moderna que a nova maioria de esquerda e o novo governo deverão ter em mente. Os cidadãos não aceitam mais o princípio do duplo programa político: o primeiro (aliciante e público) para se eleger e o segundo (arrasador e secreto) para governar. Eles exigem fidelidade à palavra empenhada e cumprimento das promessas.
Outro fato que os vencedores de 1º/6 não podem perder de vista é que os resultados dessas eleições traduzem, em primeiro lugar, uma vontade de punir a direita, mais que uma adesão a um (vago) programa de esquerda. E que parte de sua vitória é devida aos eleitores de extrema direita da Frente Nacional, que se tornou o terceiro partido da França.
Nesse sentido, como reconheceu o próprio Lionel Jospin, o novo governo não tem o direito de decepcionar. As promessas em matéria de emprego para os jovens e de luta contra o desemprego, a precariedade do trabalho e a pobreza devem ser respeitadas. Os erros, a arrogância e os desvios dos governos socialistas anteriores (1983-86 e 1988-93) seriam imperdoáveis no atual ambiente político.
Um novo fracasso mergulharia a França numa autêntica crise de regime, pois forneceria à Frente Nacional, formação neofascista parida pela crise econômica e social, o argumento que espera para se apresentar como "a única verdadeira oposição".
Assim que o número de eleitores da FN se aproximar do patamar de 20%, os partidos de direita serão forçados a negociar com ela se não quiserem ser varridos, o que garantirá à FN, no segundo turno, um número considerável de deputados e uma inevitável participação no governo. Uma certa concepção da democracia desaparecerá então.
A esquerda plural que assume dispõe, porém, de trunfos para dar certo e dissipar esse cenário-catástrofe. Ela é sustentada, em seus diversos componentes (socialista, comunista e ecologista), por uma grande esperança, que se exprime em especial nas camadas mais modestas da sociedade. Mostra uma vontade real de abordar seriamente os principais problemas da sociedade e, em primeiríssimo lugar, o desemprego.
Para isso, ela deverá restabelecer o primado do político e se impor diante dos novos atores (não eleitos) da vida pública (financistas, industriais, tecnocratas, meios de comunicação), cuja influência não parou de crescer nos últimos 20 anos.
O contexto é favorável, pois o resultado das eleições francesas parece confirmar que, na escala da União Européia, o ciclo ultraliberal iniciado em 1979 com a vitória de Margaret Thatcher no Reino Unido está chegando ao fim.
A partir de agora, apenas dois governos (Alemanha e Espanha) são de direita; todos os demais se afirmam de esquerda ou possuem ao menos um componente de esquerda. O momento histórico de impor um sentido diferente à construção européia parece, portanto, ter chegado.
Até hoje, essa construção, sob o pretexto da globalização da economia, foi feita sob critérios puramente monetaristas, sem levar em conta o grande sofrimento social que provocavam. Agora, o eixo Londres-Paris-Roma está em condições de fazer ouvir os argumentos dos decepcionados pela Europa e de fazer contrapeso a uma Alemanha cada vez menos intransigente, devido às dificuldades que ela própria enfrenta para respeitar os critérios de convergência de passagem à moeda única exigidos pelo Tratado de Maastricht.
O novo governo francês deverá resistir à ofensiva que contra ele não deixarão de desencadear, se respeitar seu programa, os mercados financeiros e os novos donos do mundo.
Ele não deverá ceder a essas pressões e poderá contar com vasto apoio popular. Pois a maioria dos cidadãos, em toda a União Européia, permanece fortemente afeiçoada ao progresso social e à solidariedade. E está preparada para se mobilizar, para reorientar, enfim, a globalização em favor das pessoas e não apenas dos mercados.

Ignacio Ramonet, 54, é diretor do mensário francês "Le Monde Diplomatique".

Tradução de André Fontenelle




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