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São Paulo, domingo, 08 de junho de 2003

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O STF e o racismo

PAULO SÉRGIO PINHEIRO


É inaceitável que se pretenda reduzir o alcance do texto constitucional na definição de racismo

Eram os idos de 1993, em Viena, na Conferência Mundial dos Direitos Humanos. O ministro da Justiça, Maurício Corrêa, foi um chefe de delegação pró-ativo: todo dia havia briefings com 30 organizações da sociedade brasileira, em todo o espectro dos grupos vulneráveis, dos indígenas aos homossexuais e lideranças da oposição. Não eram conversas alcatifadas com ministro, em que não se diz nada, mas discussões francas.
Foi em Viena que se forjou o grande diálogo que o ministro se comprometera a realizar com a sociedade civil. Geralmente, promessa de ministro só engaja seus interlocutores, mas, mal chegou a Brasília, ele convocou uma grande reunião entre governo e sociedade civil para a preparação de uma vasta agenda de luta contra a violência e de aprimoramento do Estado de Direito. Nas propostas está quase tudo o que veio depois, como o Programa Nacional de Direitos Humanos, as ouvidorias das polícias, o Programa de Proteção às Vítimas e Testemunhas, a luta contra o trabalho infantil, os direitos dos homossexuais, a luta contra o racismo.
Por que essa volta à memória? Maurício Corrêa chega à presidência do STF (Supremo Tribunal Federal) e renovam-se as esperanças do engajamento decisivo desse tribunal na luta pelos direitos humanos. Entre os desafios-chave está um caso exemplar. Faz alguns anos, visitei Gramado. Fiquei perplexo ao ver, sendo vendida livremente em quiosques na praça central, uma enorme série de publicações anti-semitas e negacionistas do Holocausto, às escâncaras, junto com outros livros. Entre os que distribuem esses livros está o sr. Siegfried Ellwanger, proprietário da editora Revisão, que edita essas obras, da sua própria lavra e de terceiros.
Por isso foi condenado, pela prática de racismo, pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul -sentença mantida pelo Superior Tribunal de Justiça, agora em reexame pelo STF em um julgamento de habeas corpus. A defesa tem a expectativa de que o crime de racismo não alcance toda e qualquer forma de discriminação, não devendo merecer interpretação de racismo. Como os judeus não seriam uma raça, o condenado não poderia ser acusado por crime de racismo, assim seu crime estaria já prescrito.
Está mais do que claro, como lembrou Maurício Corrêa em seu voto, que a propagação de teorias anti-semitas nos livros publicados pelo réu disseminam idéias que, se executadas, constituirão sério risco para a convivência com a comunidade judaica no Brasil. A conduta do acusado, ao negar o Holocausto e ao imputar aos judeus a responsabilidade pelos horrores da Segunda Guerra Mundial, incide em prática de racismo. E, portanto, imprescritível, muito bem definida na nossa na Constituição.
É inaceitável que, a essa altura da consolidação da democracia, pretenda-se reduzir o alcance do texto constitucional na definição de racismo, o que seria inadmissível na interpretação dos direitos e garantias individuais, como afirma Celso Lafer em seu parecer sobre esse caso. O conteúdo jurídico do crime da prática de racismo tem o seu núcleo nas teorias e ideologias e na sua divulgação, que discriminam grupos e pessoas, a elas atribuindo a marca de uma "raça" inferior. Como afirmou em seu voto o ministro Celso de Mello, só existe uma raça, a espécie humana. E aquele que ofende a dignidade de qualquer ser humano, movido por razões de cunho racista, ofende a dignidade de todos e de cada um.
A decisão desse julgamento tem um significado que vai muito além de punir um editor e seu crime de racismo. O que está em causa é a capacidade do Estado brasileiro de fazer valer a proteção constitucional dos direitos das minorias. Além do racismo arraigado contra os afrodescendentes, a decisão do STF, se seguir a clara indicação de Maurício Corrêa, diz respeito ao enfrentamento de outras formas de discriminação sistemática, de que também são alvo os homossexuais, os povos indígenas e as mulheres. Se não prevalecerem as teses da defesa, haverá alguma esperança para que se supere em nosso país a estigmatização e a discriminação contra os pobres, os portadores de deficiência física ou mental, os idosos.
Resta esperar que a chegada de Maurício Corrêa seja marcada com uma vitória contra o racismo e que sua presença à frente do Supremo seja tão promissora como sua participação em Viena, abrindo o debate da reforma do Judiciário à sociedade civil. Fazendo aprofundar a noção de que segurança pública para os cidadãos não significa continuidade da discriminação dos sem-poder e afrodescendentes, manutenção da tortura, execuções sumárias pelas polícias. E que a melhor proteção dos cidadãos está na defesa intransigente, pelo Judiciário, de um Estado de Direito que prevaleça para todos.


Paulo Sérgio Pinheiro, 59, professor visitante de relações internacionais na Universidade de Brown (EUA) e pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência, da USP, é expert independente sobre violência contra as crianças na ONU. Foi secretário de Estado dos Direitos Humanos do governo Fernando Henrique.


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