São Paulo, terça-feira, 08 de junho de 2004

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ROBERTO MANGABEIRA UNGER

Organizando uma surpresa

Como se organiza eleição presidencial no Brasil? As forças políticas recrutam em suas fileiras um membro da reduzida lista de políticos conhecidos em todo o país. O candidato adota alguma variante do discurso quase único: responsabilidade econômica com consciência social, social-democracia adaptada às condições existentes abaixo do equador. Finge ser espécie de Juscelino mais comprometido tanto com a justiça social como com a austeridade fiscal do que foi aquele suposto modelo. Coloca-se em mãos de marqueteiros que enfeitam suas promessas de mudança sem aventuras. Longe das câmaras, reúne-se com os grandes financiadores da campanha, entre os quais primavam antigamente os empreiteiros e primam agora os banqueiros e os magnatas da mídia. A preocupação é conquistar a confiança da massa popular sem causar sobressalto para a plutocracia. Os doadores dividem seus investimentos entre todos os candidatos principais, por um critério que tem a ver mais com o cálculo de probabilidades do que com a lógica das afinidades. Ao eleitorado sobra penetrar, por exercício de intuição, a neblina dos enganos.
As premissas desse jogo são as seguintes. A primeira é que os partidos são fracos, embora o Congresso seja forte. Seguem o norte do poder e, durante campanhas eleitorais, os movimentos da opinião. A segunda é que candidatos presidenciais devem pertencer ao elenco de políticos já nacionalmente conhecidos. Quando, por exemplo, se diz faltarem nomes para contestar a pseudopolarização entre o PT e o PSDB, o que se quer dizer é que falta quem nessa lista possa, com credibilidade, representar alternativa. A terceira é que os que integram a lista ou não querem ver grandes mudanças realizadas no país ou não têm suficiente clareza a respeito de seu conteúdo para resistir aos envolvimentos a que fica sujeito qualquer candidato presidencial que comece a subir. A quarta é que se surgirem, de fora da lista, nomes e forças que sirvam ao desejo de reorientar o rumo do país e consigam comover os eleitores, os partidos vêm atrás, em número bastante para viabilizar candidatura competitiva. Despido de preconceitos, o eleitorado busca saída. Difícil - difícil, porém possível - é romper o círculo vicioso do desconhecimento, sobretudo quando a mídia está cerceada pelo efeito duplo da dependência financeira e da desilusão política.
Nada disso difere muito de situações comuns nas democracias ricas do Atlântico Norte. A diferença é que elas não estão no chão, e nós estamos. E com esta agravante: que, dadas a capacidade do povo de sobreviver, embora com sofrimento, na informalidade, e a capacidade da economia de compensar a falta de mercado interno com a abertura de mercados externos, a crise ainda não é grande o bastante para forçar reorientação. O castigo é a mediocridade perpétua.
O país não quer escolher em 2006 entre o presidente atual e o anterior -entre duas correntes de opinião que se reuniram para frustrar-lhe, em nome de rendições travestidas de necessidades, a vontade repetidamente manifestada. Tratemos de ir ao encontro da nação, reunindo forças e construindo nomes. Antes de ser político e partidário, esse impulso é moral e intelectual: tem de começar nos espíritos de alguns indivíduos que reconheçam oportunidades onde outros só identifiquem constrangimentos. A solução, portanto, está naquilo que as regras do jogo não contemplam, mas não podem evitar: o diálogo entre o acaso e a grandeza.


Roberto Mangabeira Unger escreve às terças-feiras nesta coluna.
www.law.harvard.edu/unger


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