São Paulo, segunda-feira, 08 de julho de 2002

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VINICIUS MOTA

Pregação contra o presente

Há momentos em que a história se fecha sobre os homens e o presente oprime. Podemos estar vivendo dias assim. Parece que os mercados financeiros vão bloqueando as possibilidades de escapar aos seus ditames. Para atravessar a tormenta uns recomendam maracujina; outros, antidepressivos. Modestamente, sugiro a leitura de "As Consequências Econômicas da Paz", de John Maynard Keynes.
A pobreza de espírito que nos caracteriza como cultura deve ser bastante para explicar por que somente agora, mais de 80 anos após a sua publicação original, o público brasileiro mais amplo tenha obtido acesso, na íntegra, a um clássico do século 20.
Ao ressentimento -poderoso propulsor do intelecto- se deve o livro. Keynes, representante do Tesouro inglês na Conferência de Versalhes (1919), fracassou na tentativa de convencer os aliados a adotar suas teses. Resolveu, então, abandonar seu posto antes do término das conversações e publicar as razões de sua indignação. O resultado impressiona.
São impagáveis as descrições feitas por Keynes dos líderes presentes à reunião da França, que redefiniu a geopolítica européia após o fim da grande guerra de 1914-1918. A nota máxima vai para as passagens sobre o então presidente dos Estados Unidos, Woodrow Wilson: "Seu pensamento e temperamento eram essencialmente teológicos, não intelectuais." À mesa de negociações, o messias que cruzou o Atlântico com seus 14 pontos (e mais nada) foi trucidado por Georges Clemenceau e David Lloyd George, mestres da tática política.
Mas Keynes não comemora a resultante desse embate: a humilhação política e o dreno de praticamente toda a capacidade financeira da Alemanha. Eis o tema que mais dá a pensar nessa obra: a capacidade de seu autor de perceber as linhas que escapam do presente, de transcendê-lo.
A velha lógica mesquinha e nacionalista por que se movia a política européia -encarnada pelo dirigente francês e por seu colega britânico- já não era capaz de responder ao complexo de relações recíprocas que o avanço do capitalismo havia estabelecido entre as diversas nações européias. Impor a servidão à Alemanha e o isolamento à Rússia bolchevique era condenar a população européia a privações desnecessárias -com as principais consequências políticas (revanchismo na Alemanha; endurecimento do regime soviético na Rússia) antevistas por Keynes.
A Europa teve de passar por um confronto ainda mais sangrento -e a ameaça comunista teve de se fazer muito mais próxima- para que a consciência do mundo político ocidental se adaptasse ao que Keynes vislumbrava no final dos anos 10.
Ao menos na modernidade, a boa literatura, a boa crítica política e, por que não, o bom jornalismo quase sempre se fazem contra o caráter opressivo do presente. Tentemos aprender um pouco com esse livro de John Maynard Keynes.



AS CONSEQUÊNCIAS ECONÔMICAS DA PAZ
De: John Maynard Keynes. Editoras: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo e Universidade de Brasília. Tradução: Sérgio Bath. 212 págs. R$ 27.

Vinicius Mota é editor de Opinião da Folha. Hoje, excepcionalmente, não é publicado o artigo de Boris Fausto, que escreve às segundas-feiras nesta coluna.



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