São Paulo, segunda-feira, 08 de julho de 2002

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Tacitolu

JOÃO HERRMANN NETO


Canta o coro o hino nacional do Timor e hasteia-se, pela primeira vez em pátria livre, o pavilhão do Timor Leste


Meninas e meninos, com suas velas acesas, abaixaram-se enquanto entravam os combatentes, viúvas e órfãos da Falintil; rolam as primeiras lágrimas do embaixador da ONU, Sérgio Vieira da Costa, administrador da transição para a independência do Timor Leste. As 17 etnias cantavam seus ritos tribais em meio a cavalos, lanças e sabres. A lua crescente iluminava rostos e corpos dos que, vivos, comemoravam a liberdade conquistada por seus mortos.
As crianças, sempre as crianças, ocupam o campo da cerimônia, coloridas à luz dos holofotes, e a solista Barbara Hennings entoa "Freedom". De mãos dadas, Mari Alkatiri e eu, que, juntos -ele hoje ministro-chefe do Conselho de Ministros, então com Marcio Santilli e Flavio Bierrenbach-, começamos no Brasil a luta pelo povo maubere em 1985; vamos ao pranto. O grito parado à garganta desde 1975.
Nesses 25 anos, até o referendo de 1999, quando tudo parecia tão longe e impossível, 350 mil timorenses tombaram e hoje explode de suas tumbas e cemitérios um silêncio que abafa e fala mais alto, deixando o grito, dos agora livres, aprisionado tal como sussurro.
A emoção toma conta do campo, à beira-mar, estrelado o céu, quando começa a falar o secretário-geral da ONU, Kofi Annan. Fala em inglês, traduzido ao tetum e, nas telas que circundam o espetáculo, legendado em português. É reverenciado e aplaudido pelo papel que diplomatas, técnicos e soldados de todo o mundo, inclusive brasileiros, agregados ao organismo multilateral, prestaram à libertação do povo maubere. Termina empolgado: "Independência não é um nome, é um caminho!".
O chanceler e Prêmio Nobel, Ramos Horta, anuncia os convidados à multidão que ocupa Tacitolu, o enorme descampado onde ocorre a cerimônia de independência da República Democrática do Timor Leste.
Surpresa! Ovacionado como "pop star", durante alguns minutos, quando Ramos Horta o anuncia, o ex-presidente Bill Clinton. Nomeia Horta as ajudas recebidas e os mandatários presentes. O ministro Celso Lafer, cumpridor de sua missão e também emocionado, não ouve, constrangido, nenhuma palavra dirigida ao Brasil, nosso país quase ausente em ações concretas de ajuda ao povo irmão de Timor. Se não fossem alguns educadores abnegados, mas principalmente nossos oficiais e tropa, a presença do Brasil, apesar dos esforços iniciais do embaixador em Jacarta, Jadiel de Oliveira, e depois de nosso chefe da Representação em Dili, Ministro Kiwall de Oliveira, passaria despercebida nesses anos de luta, transição e libertação. Ainda assim, por outros compromissos, o ministro Quintão não se fez presente.
Tremula no alto do madeiro a bandeira azul. Tocam os tambores e arreia-se a flâmula internacional que garantiu a transição para a independência. É meia-noite de 19 de maio. É zero hora de 20 de maio de 2002, dia da liberdade. Silencio sepulcral enquanto três combatentes trazem o pano preto, amarelo e vermelho estrelado em branco. Recebem-no seis soldados do Exército timorense.
Canta o coro o hino nacional do Timor e hasteia-se, pela primeira vez em pátria livre, o pavilhão do Timor Leste. Pungem rostos e corações dos mandatários de 92 nações presentes.
Move-se Kofi Annan e acerca-se o herói da libertação e eleito primeiro presidente do Timor, Xanana Gusmão.
Primeiro gesto. Temperado pela reconciliação. Coragem dos libertos. Entra Xanana acompanhado da presidente da Indonésia, Megawati -a mesma Indonésia que reprimiu e matou o povo maubere. Tacitolu vai ao delírio. É o povo livre do Timor aprovando o gesto e aplaudindo o estadista que anistia o passado e constrói a amizade e a colaboração para o futuro com o vizinho.
Fala Xanana pela primeira vez como presidente eleito e empossado pelo presidente da Assembléia Constituinte, Francisco Guterres "Lú-Olo".
Inicialmente em inglês. Agradece a solidariedade dos povos do mundo. Depois em português, novo idioma oficial do Timor. Dirige-se às outras sete nações da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa e em especial a Portugal, cujos presidente da República, primeiro-ministro e chanceler estão presentes. Pronuncia-se em bahasa indonésio e se confraterniza com os ex-opressores.
Quando Xanana começa em tetum, a língua veicular do Timor, treme o chão de Tacitolu. Lembra os combates, o sofrimento, as chacinas, o papel das mulheres. Pranteia os que deram a vida. Pede união, justiça e paz. Vira-se para o mundo e fala, em inglês carregado: "Tacitolu is now the garden of the peace". Explodem os fogos da independência.
Que a Terra seja um grande Tacitolu.



João Herrmann Neto, deputado federal (PPS-SP), é líder do partido na Câmara. Foi enviado da ONU ao Timor Leste.


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