São Paulo, domingo, 08 de setembro de 2002

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ANTÔNIO ERMÍRIO DE MORAES

Descanse em paz...!

As ameaças de recessão mundial e de débâcle nas Bolsas e o clima de tensão no Iraque -às vésperas do 11 de setembro- tornaram o clima da semana extremamente pesado.
Estava pensando nisso tudo quando me ligou a Joaninha, velha amiga dos bancos escolares. Acreditei que viria um comentário sobre a gravidade do quadro mundial. Que nada! A Joaninha é apegada ao varejo, às coisas do dia-a-dia, que afetam diretamente a sua vida, como a sujeira das praças públicas, o preço dos remédios, a precariedade dos ônibus e os assaltos cotidianos.
A propósito, ela relatou-me, indignada, um novo tipo de assalto, que atinge os mortos. Fiquei intrigado. Mas explicou-me. Trata-se de uma quadrilha que se infiltrou no Serviço Funerário do Município de São Paulo durante os oito anos da gestão Maluf-Pitta e ali achacou, sem a menor cerimônia, as floriculturas que forneciam as coroas para os enterros, e que, evidentemente, repassaram o custo das propinas aos familiares dos mortos.
Disse-lhe que isso é varejo no campo da corrupção. Ela argumentou, porém, que o negócio era de grande monta. Como ocorrem 200 sepultamentos por dia, e a morte não respeita sábados e domingos, a Joaninha calculou que foram 73 mil enterros por ano -e 584 mil no período considerado.
Vejam com o que ela vai se preocupar... Mas num ponto está certa. Os parentes, na hora da dor e do descontrole, são vítimas fáceis dos achacadores, e, indefesos, acabam pagando o sobrepreço que lhes é imposto.
É evidente que quase 600 mil sepultamentos devem ter rendido uma boa bolada aos funcionários corruptos e generosos dividendos aos seus superiores. É assim que se formam as caixinhas eleitorais...
Eta, Brasil! A corrupção não respeita nem sequer os mortos. Há vários anos os cemitérios de São Paulo são visitados por malandros que "assaltam" os mortos, tirando-lhes os dentes de ouro e as alianças, a exemplo do que aconteceu com a Taça Jules Rimet, que, em 1983, foi roubada, derretida e vendida no mercado.
Por fim, a Joaninha lamentou: "No passado, meu pai perguntava: "Para que fazer muros nos cemitérios se quem está dentro não pode sair e quem está fora não quer entrar?". Hoje tudo mudou. Os mortos vão precisar de seguranças para se defender de quem, sem ser chamado, adentra nos seus túmulos. Já não se pode morrer em paz...".
Com essa conversa, suspeitei que essa malandragem de varejo que ocorre nos pequenos serviços, nos sindicatos, na vida dos ambulantes e na de tantos outros não deve entrar no índice de corrupção calculado pela International Transparency, no qual o Brasil dista 45 posições em relação aos países menos corruptos (Finlândia, Dinamarca e Nova Zelândia). Se entrasse, certamente estaríamos pior.
É verdade que há 57 países mais corruptos do que o Brasil. Mas devemos olhar para frente, e não para trás. A corrupção é como o diabetes. Não tem cura, mas precisa ser vigiado o tempo todo, porque, solto, onera a administração, deteriora os valores e acaba com a esperança da juventude. O Brasil tem uma grande caminhada para acabar ou pelo menos para reduzir a impunidade. Afinal, é o varejo que mais afeta a vida do povo.


Antônio Ermírio de Moraes escreve aos domingos nesta coluna.


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