São Paulo, domingo, 08 de setembro de 2002

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

A Aids, o Brasil e a ONU

GELSON FONSECA JR. e ALEX GIACOMELLI



Países como o Brasil, a despeito de seus problemas, podem oferecer liderança em questões como a da Aids

A Aids tornou-se um dos maiores desafios do nosso tempo. Em relatório recente sobre a epidemia, a ONU revela que 40 milhões de pessoas vivem hoje com o HIV ou a Aids. Vinte e cinco milhões já morreram, dos quais 3 milhões no ano passado. Não temos ainda a cura da Aids, mas sabemos que a cooperação internacional é essencial para controlar a epidemia.
Foi para responder a esse desafio que a ONU realizou Sessão Especial da Assembléia Geral em junho do ano passado, em Nova York. Pela primeira vez, definiu-se uma estratégia global para enfrentá-lo. E essa estratégia muda os rumos da cooperação internacional, pois reconhece que o tratamento é instrumento tão importante quanto a prevenção no combate ao HIV/Aids.
Até então, os organismos internacionais recomendavam que a resposta nos países em desenvolvimento se concentrasse nas políticas de prevenção. A sessão especial consagrou um novo princípio: o tratamento, a prevenção e o enfoque de direitos humanos devem fazer parte de uma ação integrada. Reconheceu, igualmente, que as políticas de tratamento exercem influência positiva sobre a prevenção. Além disso, reiterando resolução da Comissão de Direitos Humanos da ONU, considerou o acesso a medicamentos como um dos elementos fundamentais para o pleno gozo da saúde física e mental.
Outra vitória importante foi a afirmação da política de preços diferenciados.
O exemplo do programa brasileiro, coordenado pelo doutor Paulo Roberto Teixeira, contribuiu para esses avanços. Nossa política de distribuição gratuita de medicamentos, sobretudo de anti-retrovirais, e os benefícios daí advindos constituíam em si mesmos argumentos convincentes. O Brasil apresentou números irrefutáveis: entre 1996 e 2001, o número de mortes caiu, em média, 50%; as internações hospitalares reduziram-se em 75%; e o número de novos casos diminuiu drasticamente. Segundo previsões do Banco Mundial, o Brasil teria, no ano 2000, 1,2 milhão de pessoas com HIV ou Aids. O programa brasileiro reduziu esse número pela metade.
Além disso, a política de distribuição gratuita de medicamentos mostrava que era possível tratar até mesmo as pessoas mais pobres. A produção de genéricos pelos laboratórios nacionais descortinava novos caminhos, ao permitir a negociação de reduções de preço com empresas farmacêuticas estrangeiras e a compra de remédios mais baratos. O Brasil sempre deixou claro que sua política não contraria as regras internacionais de propriedade intelectual.
A Sessão Especial aumentou a conscientização da comunidade internacional em relação ao problema da Aids e chamou a atenção para o impacto da epidemia. Vários países estão retrocedendo décadas em seus índices de desenvolvimento. Na África Sub-Saariana, por exemplo, a expectativa de vida, de quase 60 anos no início dos anos 90, caiu para 47 anos, o mesmo nível da década de 1950. A taxa de crescimento econômico nesses países caiu 2% a 4% em razão dos efeitos da epidemia. Mais de 14 milhões de crianças já se tornaram órfãs por causa da Aids, 11 milhões na África Sub-Saariana.
Como os meios para combater a Aids existem e são eficazes, não tomar as medidas necessárias significaria transformar uma tragédia humana e econômica em uma tragédia moral. Os primeiros 20 anos desde o surgimento da Aids provavelmente entrarão para a história como um período em que pouco se fez para difundir os benefícios do tratamento, com raras exceções, entre as quais a brasileira.
Um ano depois da sessão especial, podemos dizer que há sinais promissores.
Seguindo recomendação da Declaração de Compromisso, criou-se o Fundo Global para financiar projetos de combate à Aids -bem como à malária e à tuberculose-, com a participação de governos, do setor privado, de ONGs e de agências internacionais. A segunda reunião do Fundo, realizada recentemente em Nova York, aprovou os primeiros projetos, que deverão mobilizar quase US$ 1 bilhão, beneficiando cerca de 30 países nos próximos cinco anos.
Claro que ainda estamos muito longe da meta de US$ 7 bilhões a US$ 10 bilhões anuais necessários para enfrentar a epidemia de maneira abrangente e eficaz. Estes, porém, são os primeiros passos. Embora não esteja em condições de contribuir com recursos financeiros para o fundo, o Brasil leva adiante projetos de cooperação técnica com países latino-americanos, caribenhos e africanos.
Uma das características fundamentais de alguns dos projetos aprovados pelo Fundo Global é o fornecimento gratuito de anti-retrovirais. Para os brasileiros, pode parecer uma medida banal, pois esta política é adotada no país há anos. No plano internacional, no entanto, isso representa uma verdadeira revolução.
Este curto histórico da luta contra a Aids comprova que as conclusões da sessão especial continuam válidas e servem de base para iniciativas como a do Fundo Global. Demonstra, igualmente, que a ONU desempenha papel fundamental no debate e encaminhamento de questões sociais. Apesar de a Aids ser um tema complexo e repleto de particularidades nacionais, as Nações Unidas conseguiram aproximar países em desenvolvimento e desenvolvidos, instituições internacionais e ONGs, e promover uma visão comum sobre como enfrentar esse desafio.
Por fim, esta análise mostra também que países como o Brasil, a despeito de seus problemas, podem oferecer liderança em questões como a da Aids. Como reconhece o relatório da ONU, "o Brasil continua a ser exemplo de integração entre tratamento amplo e renovado compromisso com a prevenção".

Gelson Fonseca Júnior é embaixador na Missão Permanente do Brasil na ONU. Alex Giacomelli da Silva é secretário na Missão Permanente do Brasil na ONU.


Texto Anterior: TENDÊNCIAS/DEBATES
Paulo Renato Souza: Melhor educação para todos

Próximo Texto: Painel do leitor
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.