São Paulo, terça, 8 de setembro de 1998

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

O avanço da insensatez


Ninguém, em sã consciência, pode alegar surpresa pela crise que está sacudindo as finanças mundiais


JORGE WILHEIM

"A história nunca se repete; o homem, sim." Voltaire

É sempre surpreendente a abismal capacidade do ser humano de repetir erros, assumir posições e tomar decisões contrárias a seus interesses.
Incapaz de imaginar o longo prazo, inibido por razões diversas em sua intuição, aferrando-se a preconceitos ou arrastado pelas emoções do momento, escolhe caminhos cheios de obstáculos; é obrigado a bruscas correções de rumo após violentos escorregões, desperdiçando tempo e recursos. Esse vaivém desafia a afirmação de Descartes: "O bom senso é o que há de mais espalhado no mundo".
Essa característica é comum, mas se torna mais grave quando recai sobre lideranças, pessoas com poder, ou sobre colégios eleitorais, cujas decisões têm profundas repercussões na vida de milhões de pessoas, alterando por algum tempo o próprio percurso da história. Historiadores como Barbara Tuchman e Eric Hobsbawm dedicaram páginas exemplares à gravidade e à frequência da insensatez na história.
Debruçar-se sobre casos históricos longínquos é, no entanto, mais fácil (devido ao distanciamento crítico e emocional) do que desnudar a insensatez que nos rodeia hoje. No atual período de transição da história, cujas descontinuidades e cujo futuro ignoto nos condenam à incerteza, abundam os exemplos de decisões e posturas insensatas -isto é, contrárias aos interesses de quem as toma.
A insensatez mais genérica é talvez a de erigir a economia de mercado como reguladora imperial do desenvolvimento das nações, simetricamente acompanhada pelo esforço de diminuir a ação do Estado nesse campo.
A tranquilidade com que alguns defensores do neoliberalismo vaticinaram a exclusão de vastas parcelas da população do processo produtivo e declararam a irrelevância de países e continentes para a consolidação dessa economia contradiz, no médio prazo, os próprios interesses do sistema. Os excluídos não somem pacificamente; e o abandono dos irrelevantes acaba encolhendo brutalmente o mercado global, acirrando a competição entre as empresas transglobais que necessitam de expansão.
As teses são uma ameaça para o sistema: a criação de um arquipélago de bem-estar para os privilegiados, cercado por um oceano de excluídos inquietos ou raivosos, além de odiosa, não se constitui em um cenário que possa beneficiar o mercado.
Foi suficiente um primeiro susto (agitações na Indonésia, resultantes da desvalorização da moeda) para que os neoliberais mais empedernidos clamassem pela volta à ação do Estado. E, na sucessão das fases da crise, o próprio Banco Mundial recolocou o papel fundamental do Estado.
Finalmente, no atual desmoronamento de valores nas Bolsas, ressurge, com possibilidade de evoluir, a tese antiga (James Tobin, 1973) de regular e taxar o mercado de capitais, ventilada em vão por diversos autores durante duas décadas.
Será sempre necessário chegar ao fundo do poço para que cesse a insensatez? Ninguém, em sã consciência, pode alegar surpresa pela crise que sacode as finanças mundiais.
Cito, como exemplo, alguns dos inúmeros autores que a anunciaram. Kurz, em artigos publicados há mais de um ano, descrevia a virtualidade da economia, denunciando o desligamento entre a cotação negociada nas Bolsas e o real valor dos ativos que as ações deveriam representar, mencionando também a grave possibilidade de a crise envolver o Japão.
Madrick apontou para o novo patamar, rebaixado, do crescimento da economia dos EUA. Kutner indicou que o aparente reequilíbrio do desemprego norte-americano camuflava a realidade: um desempregado precisava de mais de uma nova atividade para manter sua receita. Sachs oferece sucessivos cálculos de taxas que poderiam ser cobradas para financiar o desenvolvimento, regulando os excessos nocivos dos mercados de capitais. E o presidente Fernando Henrique Cardoso fez veemente apelo às potências centrais para que esses mercados fossem regulados.
No entanto, o ataque à própria percepção -a perda do sentido do real- ocorre com frequência. Recordo-me da reação de passividade e enfado do vasto grupo de experts que o Banco Mundial reuniu em Washington em 1995, durante importante seminário preparatório da Habitat 2, dedicado ao financiamento da cidade, quando os provoquei dizendo que "olhavam para o futuro com olhos do passado", tentando evidenciar que o desenvolvimento deveria enfrentar rupturas e descontinuidades de um período de transição da história, muito além dos meros ajustes neoliberais por que propugnavam.
Essa mesma insensatez compareceu aos debates do Congresso, quando foi recusada a maioria necessária para as medidas que equilibrariam as contas nacionais, reduzindo os déficits da Previdência e fiscal, apenas para "derrotar o governo" -quando, de fato, derrotava-se o Brasil.
E ela pode ser percebida na campanha eleitoral paulista. À luz das pesquisas, 29% do eleitorado ainda prefere alguém que "rouba, mas faz", ou outro que se declara "diferente" (quando não o é), em lugar de prosseguir com a administração séria, honesta e operosa de Covas. Esse menosprezo por valores éticos corresponde a dar um tiro no pé; teremos de pagar caro por escolhas aventurosas.
Um único exemplo, para a reflexão do eleitor: informa-se que os 36 km do rodoanel em concorrência estão estimados em R$ 450 milhões, e a nova descida da Imigrantes (20 km de viadutos e túneis) está orçada em R$ 480 milhões. Como é que a avenida Água Espraiada, de apenas quatro quilômetros, sem desapropriações nem túneis, custou na gestão Maluf a bagatela de R$ 850 milhões? Será porque, como diz sua propaganda, o homem "não é um santo"? Na questão eleitoral, ainda é tempo de inverter a tendência à insensatez, salvando-nos de quatro anos de retrocesso.



Jorge Wilheim, 70, arquiteto e urbanista, é membro do Conselho de Reforma do Estado. Foi secretário-geral da conferência Habitat 2 da ONU (Organização das Nações Unidas), secretário de Economia e Planejamento (governo Paulo Egydio) e secretário do Meio Ambiente do Estado de São Paulo (governo Quércia).





Texto Anterior | Próximo Texto | Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.