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BORIS FAUSTO
Velhos maus tempos
Aconteceu antes de 11 de setembro, ou melhor, vários anos antes
de 11 de setembro, quando os vôos
eram descuidados e ninguém olhava
de esguelha para os outros passageiros
na ânsia de detectar uma fisionomia
suspeita.
Eu ia de São Paulo a Cidade do México para um encontro acadêmico.
Viagem diurna, sem surpresas. O
avião ia quase lotado e acabou completando a lotação quando, numa escala em Bogotá, entraram vários colombianos.
Não por acaso, predominava um ar
meio festivo. É que a grande maioria
dos brasileiros era formada por turistas da classe média alta -o crédito e
os pacotes ainda eram raros. Gente
bem arrumada, em trajes esportivos,
que ia gozar as delícias das praias de
Acapulco. Nem lhes passava pela cabeça ficar uns dias em Cidade do México, que, embora poluída e barulhenta, ostenta algumas jóias da arquitetura barroca colonial. Optar pelo Yucatán, então, nem pensar. Estou quase
certo de que os belos vestígios da cultura maia, meio escondidos na mata,
seriam vistos com infinito desprezo,
como uma montanha de pedras sem
interesse.
De vez em quando, a conversa banal
da turma -podia ouvi-la, porque
aquilo parecia uma reunião de família,
e brasileiro gosta de falar alto- era
entrecortada por breves referências à
nossa vida social. Choviam elogios à
determinação do general-presidente
Médici, e alguns se embalavam nos
sonhos do "milagre brasileiro". Se eu
viver até a virada do século -dizia
um cavalheiro de meia-idade-, vou
ver o Brasil ultrapassar o Japão.
Na chegada, uma surpresa que não
vinha do aeroporto acanhado, meio
escuro. Um funcionário do aeroporto,
com cara de índio (que horror!), mandou que os brasileiros fizessem fila em
separado. Foi além, apresentando um
formulário especial que deveríamos
preencher.
Que diabo seria aquilo? Era simplesmente a confirmação de um fato que
se podia ler apenas nas entrelinhas dos
censurados jornais brasileiros. Havia
no Brasil uma epidemia de meningite,
e as autoridades sanitárias mexicanas
tratavam de se prevenir. Devíamos indicar se tivéramos alguma febre ou
outro sintoma estranho recentemente
e nos comprometíamos a comunicar
ao serviço sanitário qualquer sinal de
anomalia durante nossa permanência
no México.
A turma brasileira reagiu garbosamente. Aquilo era uma exigência descabida e, se havia uma epidemia de
meningite no Brasil -o que lhes parecia uma fantasia, pois dela não ouviram falar-, era uma coisa confinada
aos pobres, com os quais só tinham
raros contatos, à distância. Quis ponderar que nossos servidores domésticos eram pobres e cozinhavam, comiam e, em certos casos, dormiam em
nossas casas. Mas resolvi ficar quieto,
pois, em situações assim, quem tenta
introduzir uma pequena luz de verdade acaba se convertendo em bode expiatório.
Entre protestos contra aquela humilhação, entre ameaças de exigir indenização pela suposta perda do vôo para Acapulco, a brava gente acabou resignando-se e preenchendo os formulários. Não sei se exagero, mas, à distância, percebi um maligno sorriso de
ironia no canto da boca dos colombianos. Foi impossível confirmar a impressão, pois eles, rapidamente, sumiram na noite.
Boris Fausto escreve às segundas-feiras nesta
coluna.
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