São Paulo, segunda-feira, 08 de outubro de 2001

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

BORIS FAUSTO

Velhos maus tempos

Aconteceu antes de 11 de setembro, ou melhor, vários anos antes de 11 de setembro, quando os vôos eram descuidados e ninguém olhava de esguelha para os outros passageiros na ânsia de detectar uma fisionomia suspeita.
Eu ia de São Paulo a Cidade do México para um encontro acadêmico. Viagem diurna, sem surpresas. O avião ia quase lotado e acabou completando a lotação quando, numa escala em Bogotá, entraram vários colombianos.
Não por acaso, predominava um ar meio festivo. É que a grande maioria dos brasileiros era formada por turistas da classe média alta -o crédito e os pacotes ainda eram raros. Gente bem arrumada, em trajes esportivos, que ia gozar as delícias das praias de Acapulco. Nem lhes passava pela cabeça ficar uns dias em Cidade do México, que, embora poluída e barulhenta, ostenta algumas jóias da arquitetura barroca colonial. Optar pelo Yucatán, então, nem pensar. Estou quase certo de que os belos vestígios da cultura maia, meio escondidos na mata, seriam vistos com infinito desprezo, como uma montanha de pedras sem interesse.
De vez em quando, a conversa banal da turma -podia ouvi-la, porque aquilo parecia uma reunião de família, e brasileiro gosta de falar alto- era entrecortada por breves referências à nossa vida social. Choviam elogios à determinação do general-presidente Médici, e alguns se embalavam nos sonhos do "milagre brasileiro". Se eu viver até a virada do século -dizia um cavalheiro de meia-idade-, vou ver o Brasil ultrapassar o Japão.
Na chegada, uma surpresa que não vinha do aeroporto acanhado, meio escuro. Um funcionário do aeroporto, com cara de índio (que horror!), mandou que os brasileiros fizessem fila em separado. Foi além, apresentando um formulário especial que deveríamos preencher.
Que diabo seria aquilo? Era simplesmente a confirmação de um fato que se podia ler apenas nas entrelinhas dos censurados jornais brasileiros. Havia no Brasil uma epidemia de meningite, e as autoridades sanitárias mexicanas tratavam de se prevenir. Devíamos indicar se tivéramos alguma febre ou outro sintoma estranho recentemente e nos comprometíamos a comunicar ao serviço sanitário qualquer sinal de anomalia durante nossa permanência no México.
A turma brasileira reagiu garbosamente. Aquilo era uma exigência descabida e, se havia uma epidemia de meningite no Brasil -o que lhes parecia uma fantasia, pois dela não ouviram falar-, era uma coisa confinada aos pobres, com os quais só tinham raros contatos, à distância. Quis ponderar que nossos servidores domésticos eram pobres e cozinhavam, comiam e, em certos casos, dormiam em nossas casas. Mas resolvi ficar quieto, pois, em situações assim, quem tenta introduzir uma pequena luz de verdade acaba se convertendo em bode expiatório.
Entre protestos contra aquela humilhação, entre ameaças de exigir indenização pela suposta perda do vôo para Acapulco, a brava gente acabou resignando-se e preenchendo os formulários. Não sei se exagero, mas, à distância, percebi um maligno sorriso de ironia no canto da boca dos colombianos. Foi impossível confirmar a impressão, pois eles, rapidamente, sumiram na noite.


Boris Fausto escreve às segundas-feiras nesta coluna.



Texto Anterior: Rio de Janeiro - Carlos Heitor Cony: O gato e o rato
Próximo Texto: Frases

Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.