São Paulo, segunda-feira, 08 de outubro de 2001

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Guerra e paz

EMIR SADER

O que efetivamente mudou no mundo, depois dos atentados de 11 de setembro? Mais além do impacto dos acontecimentos e da sua multiplicação pelas imagens universalmente difundidas e reiteradas pela TV, as visões impressionistas podem obscurecer o seu verdadeiro significado e o que eles mudaram no mundo.
A violência pode estar sendo intensificada em nome de seu combate. Chegou-se, por exemplo, a dizer que esses acontecimentos seriam mais importantes que a queda do Muro de Berlim, como escreveu o chanceler brasileiro, o que constitui um erro elementar de avaliação. Na virada dos anos 90, mudou o período histórico de um mundo bipolar entre duas superpotências com sistemas sociais diferentes, a um mundo unipolar, com uma superpotência, a maior potência capitalista da história.
Esse período continua vigente, não foi alterado pelos acontecimento do dia 11 de setembro. Os EUA podem até se fortalecer. O que mudou foi a conjuntura política internacional. Até aquela terça-feira, a iniciativa no plano mundial estava com os movimentos de oposição à globalização liberal, como os próprios acontecimentos de Gênova confirmavam. O tema central era a injustiça da ordem econômica liberal e a responsabilidade tanto dos organismos internacionais responsáveis por ela -FMI, Banco Mundial, OMC entre outros- como dos governos das potências capitalistas, corporificadas no G8.
Os atentados de 11 de setembro não mudaram radicalmente a relação de forças. O que eles alteraram foi a conjuntura política dentro do período iniciado por volta de 1991, que continua vigente nos seus contornos básicos, a começar pelas injustiças que o movimento por um outro mundo denuncia. A nova conjuntura colocou a iniciativa nas mãos dos EUA e redefiniu a temática central: a luta contra o terrorismo internacional. Essa luta, por sua vez, nos termos da posição norte-americana, não opõe guerra e paz, mas paz identificada com os valores de liberdade e democracia -no sentido norte-americano- e terrorismo fundamentalista islâmico.
Essa conjuntura pode se prolongar por muito tempo, porém ela só agravará a situação internacional agudizada pelos atentados. A situação é fruto da polarização em que a globalização liberal tenta encerrar a humanidade: a violência da globalização liberal e a globalização da violência. Se ficarmos encerrados nos termos que a hegemonia norte-americana tenta impor ao mundo, esse será cada vez mais inseguro para todos e injusto para a grande maioria.
A superação da situação atual só será possível se desqualificarmos esses termos e recolocarmos a questão da violência, da guerra e do terrorismo nos seus verdadeiros parâmetros. Trata-se de lutar contra a guerra, entendendo-a como o oposto da paz. Lutar contra todas as formas de violência, incluídos os terrorismos, religiosos ou de Estado.
Trata-se, portanto, em primeiro lugar, de lutar pela paz, desativando os múltiplos focos de guerra existentes no mundo, dentre os quais a Palestina, a Colômbia, o País Basco, Chiapas, a Irlanda do Norte e a Caxemira, entre outros.


Até aquela terça-feira, a iniciativa no plano mundial estava com os movimentos de oposição à globalização liberal


Buscar termos reais de superação justa e duradoura dos conflitos, em que organismos internacionais como a ONU, o Fórum Social Mundial, organizações religiosas, sociais e culturais internacionais deveriam desempenhar um papel ativo central.
Por outro lado, seria necessário lutar decididamente contra a expansão dos complexos industrial-militares existentes, para que não somente deixem de abastecer esses conflitos e governos ansiosos de se armar com essas mercadorias mortíferas como se reciclem esses recursos para fundos de desenvolvimento para os países mais pobres do mundo. Além disso, que se combata duramente o comércio clandestino de armamentos, que abastece com armas modernas os conflitos atuais, fazendo deles mecanismos de enriquecimento para essa odiosa indústria de destruição. Para o que seria igualmente necessário terminar definitivamente com os paraísos fiscais, onde esses recursos são reciclados.
Somente os que lutam por um outro mundo possível, os que querem deslocar os termos em que a globalização liberal quer encerrar a humanidade, podem contribuir decididamente para a paz no mundo. O Fórum Social Mundial de Porto Alegre (31/1 a 5/2/2002) é o lugar privilegiado para a apresentação de um plano geral de paz, que inclua os termos da paz possível nos lugares mencionados para a Palestina e para todos os outros possíveis, assim como formas efetivas de combate à indústria bélica, ao comércio clandestino de armamentos e aos paraísos fiscais.
Um mundo sem guerras é possível, contanto que não nos deixemos levar pela apropriação do tema da paz justamente por aqueles que são os principais responsáveis pelas guerras, pela produção do armamento material e espiritual do clima belicoso que domina o mundo. Um mundo em paz é possível, contanto que lutemos contra as guerras e pelo desarmamento material e moral de todos, com uma ordem mundial que contemple o interesse de todos, de forma equitativa e duradoura.


Emir Sader, 58, é professor de sociologia da USP e da Uerj e autor de "Século 20 - uma Biografia Não-Autorizada" (Perseu Abramo), entre outras obras.



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