São Paulo, segunda, 9 de março de 1998

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Do Guará aos esqueletos

JOSÉ SERRA

Suponhamos que o utópico Estado do Guará tenha exibido, em 1996, um déficit (medido pelas necessidades de financiamento do setor público -NFSP) igual a zero. Ou seja, suas receitas equivaleram exatamente às suas despesas. Seu endividamento, em termos reais, manteve-se o mesmo.
Admitamos agora que, no começo de 1997, o governo do Guará tenha vendido uma de suas empresas, obtendo uma receita líquida de cem, e que tenha utilizado esse dinheiro para concluir uma estrada.
Pensa o leitor que o impacto desses eventos sobre o déficit público brasileiro é nulo? Pois está errado. Do jeito que as contas são medidas, a operação realizada no Guará provocou um aumento do déficit público nacional equivalente a cem. Tem cabimento?
Isso ocorre, erradamente, porque a receita da venda do patrimônio público não é contabilizada no cálculo da receita pública total, ao passo que qualquer despesa é levada em conta no gasto total. Por isso mesmo houve quem dissesse: "O déficit público brasileiro aumentou porque os Estados gastaram o dinheiro da privatização". Uma tolice que seria irrelevante não fosse o impacto psicológico negativo da recente divulgação dos números de 1997 sobre os agentes econômicos, domésticos e internacionais.
O raciocínio acima continuaria válido mesmo que o Guará tivesse gasto o dinheiro da privatização para pagar salários atrasados ou dívidas cujas variações não entram no déficit (por exemplo, com fornecedores). E o fato de que a receita da privatização não se repetirá no ano seguinte não é motivo para desconsiderá-la neste ano. Seria o mesmo, por exemplo, que não contabilizar a CPMF como receita pelo fato de que é temporária.
A meu ver, o país dormiu no ponto ao conformar-se com os critérios tradicionais da NFSP, criados pelo FMI. A Argentina, por exemplo, sempre contabilizou o produto de suas privatizações como receita, e o FMI acabou aceitando. Madame Thatcher fez a mesma coisa. Há muito deveríamos ter revisado os critérios e dado ampla publicidade a isso.
É bom esclarecer: gastar a receita de privatização em salários, bens e serviços não aumenta o déficit público, mas esta não é a melhor maneira de utilizar aquela receita. O melhor mesmo é abater dívida, reduzindo, assim, despesas com juros e, como consequência, o próprio déficit, de forma duradoura.
Por que os Estados só fizeram isso parcialmente? Certamente porque os governadores não se viram pressionados, e isso por um motivo simples. O próprio governo federal, em 1996 e 1997, por meio da Caixa Econômica, emprestou cerca de R$ 9 bilhões à maioria dos Estados (que só devolveram, até agora, R$ 1 bilhão) para que estes pagassem dívidas vencidas e vincendas a curto prazo, AROs (antecipações de receita orçamentária, dívidas de curtíssimo prazo, que nem entram no cálculo do déficit público) e financiassem planos de demissões voluntárias.
Essa medida geral, excessivamente generosa, aumentou, como é óbvio, a propensão ao gasto dos governos estaduais em face do alongamento de suas dívidas preexistentes. Sem ela, parte maior das receitas de privatização teria servido para abater dívida.
Mas há um aspecto positivo da política da União em relação aos Estados com vistas ao futuro: estes não mais contarão com duas fontes geradoras de déficits, até agora caudalosas: os bancos públicos estaduais e a dívida mobiliária. Só faltaria agora eliminar a TR como superindexador da economia e finíssima matéria-prima para fabricar os esqueletos do armário.


José Serra escreve às segundas-feiras nesta coluna.
E-mail: jserra@senador.gov.br



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