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Do Guará aos esqueletos
JOSÉ SERRA
Suponhamos que o utópico Estado
do Guará tenha exibido, em 1996, um
déficit (medido pelas necessidades de
financiamento do setor público
-NFSP) igual a zero. Ou seja, suas
receitas equivaleram exatamente às
suas despesas. Seu endividamento, em
termos reais, manteve-se o mesmo.
Admitamos agora que, no começo
de 1997, o governo do Guará tenha
vendido uma de suas empresas, obtendo uma receita líquida de cem, e
que tenha utilizado esse dinheiro para
concluir uma estrada.
Pensa o leitor que o impacto desses
eventos sobre o déficit público brasileiro é nulo? Pois está errado. Do jeito
que as contas são medidas, a operação
realizada no Guará provocou um aumento do déficit público nacional
equivalente a cem. Tem cabimento?
Isso ocorre, erradamente, porque a
receita da venda do patrimônio público não é contabilizada no cálculo da
receita pública total, ao passo que
qualquer despesa é levada em conta
no gasto total. Por isso mesmo houve
quem dissesse: "O déficit público brasileiro aumentou porque os Estados
gastaram o dinheiro da privatização".
Uma tolice que seria irrelevante não
fosse o impacto psicológico negativo
da recente divulgação dos números de
1997 sobre os agentes econômicos,
domésticos e internacionais.
O raciocínio acima continuaria válido mesmo que o Guará tivesse gasto o
dinheiro da privatização para pagar
salários atrasados ou dívidas cujas variações não entram no déficit (por
exemplo, com fornecedores). E o fato
de que a receita da privatização não se
repetirá no ano seguinte não é motivo
para desconsiderá-la neste ano. Seria
o mesmo, por exemplo, que não contabilizar a CPMF como receita pelo fato de que é temporária.
A meu ver, o país dormiu no ponto
ao conformar-se com os critérios tradicionais da NFSP, criados pelo FMI.
A Argentina, por exemplo, sempre
contabilizou o produto de suas privatizações como receita, e o FMI acabou
aceitando. Madame Thatcher fez a
mesma coisa. Há muito deveríamos
ter revisado os critérios e dado ampla
publicidade a isso.
É bom esclarecer: gastar a receita de
privatização em salários, bens e serviços não aumenta o déficit público,
mas esta não é a melhor maneira de
utilizar aquela receita. O melhor mesmo é abater dívida, reduzindo, assim,
despesas com juros e, como consequência, o próprio déficit, de forma
duradoura.
Por que os Estados só fizeram isso
parcialmente? Certamente porque os
governadores não se viram pressionados, e isso por um motivo simples. O
próprio governo federal, em 1996 e
1997, por meio da Caixa Econômica,
emprestou cerca de R$ 9 bilhões à
maioria dos Estados (que só devolveram, até agora, R$ 1 bilhão) para que
estes pagassem dívidas vencidas e vincendas a curto prazo, AROs (antecipações de receita orçamentária, dívidas de curtíssimo prazo, que nem entram no cálculo do déficit público) e
financiassem planos de demissões voluntárias.
Essa medida geral, excessivamente
generosa, aumentou, como é óbvio, a
propensão ao gasto dos governos estaduais em face do alongamento de
suas dívidas preexistentes. Sem ela,
parte maior das receitas de privatização teria servido para abater dívida.
Mas há um aspecto positivo da política da União em relação aos Estados
com vistas ao futuro: estes não mais
contarão com duas fontes geradoras
de déficits, até agora caudalosas: os
bancos públicos estaduais e a dívida
mobiliária. Só faltaria agora eliminar a
TR como superindexador da economia e finíssima matéria-prima para
fabricar os esqueletos do armário.
José Serra escreve às segundas-feiras nesta coluna.
E-mail: jserra@senador.gov.br
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