São Paulo, segunda, 9 de março de 1998

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Universidade e favela: um projeto cultural



Havia a ambição de criar no morador da favela o hábito de frequentar os espaços culturais da própria USP
JOÃO ALEXANDRE BARBOSA

Não sei como dizer o que vou dizer sem parecer a exaltação de um currículo, mas, mesmo assim, vou arriscar. Durante alguns anos, entre os últimos da década passada e os primeiros desta, exerci funções na USP que me permitiram criar e incentivar projetos culturais. Alguns deram certo e, ao que parece, continuam; outros, e é sobre esses que vou me deter, não puderam ser realizados ou não continuaram.
Dentre os últimos, menciono um que acalentei com o maior entusiasmo -um curso de atualização cultural para os servidores da universidade, ministrado por alunos de pós-graduação mediante o pagamento de um salário mínimo, com aulas dadas aos sábados pela manhã em um dos anfiteatros.
As aulas iniciais foram mágicas (lembro-me que eram de história do Brasil e abordavam o problema do negro em épocas distintas de nossa evolução). Era mesmo comovente ver o entusiasmo com que eram recebidas.
A idéia era muito simples: dar ao funcionário de volta aquilo que eles ajudavam, de modo fundamental, a dar aos alunos. Era também um modo de fazer os servidores participarem da riqueza cultural da universidade (uma vez que seus salários nem de longe permitiam acesso a outras esferas de riqueza), frequentando suas bibliotecas, seus museus, seus laboratórios; fazer com que se sentissem parte essencial dela.
Por sua vez, os alunos, dando aulas para um público diferente daquele a que estavam habituados, podiam medir o alcance mais amplo de suas informações especializadas, adequando suas expressões àquele público sem perder jamais (como ponto de honra do projeto) o nível do que era transmitido.
Por que esse projeto não teve continuidade? Porque, exatamente em função de seus salários, os servidores não podiam se dar ao luxo de assistir aulas no sábado; aproveitavam o dia para trabalhos eventuais que ajudassem nos seus pequenos orçamentos domésticos.
Mas é um projeto que não pude realizar que me faz escrever este texto, por duas razões. A primeira é a ocupação recente de terrenos da USP por, segundo se diz, moradores da favela São Remo e os problemas daí decorrentes para a administração atual da universidade. Isso me fez lembrar a triste morte, ainda recente, de um jovem na raia da USP, na administração passada.
Em ambos os casos, trata-se de um conflito entre a universidade e a comunidade exterior a ela -mas da qual, é preciso nunca esquecer, ela faz parte (comunidade, aliás, que parece ter sido desprezada pelo fechamento do campus nos finais de semana).
A universidade faz parte da comunidade não apenas por receber dinheiro dos chamados cofres públicos (no Brasil de hoje, infelizmente, cada vez mais privados). Participa com cursos de extensão, hospitais, museus e bibliotecas, para não falar da reflexão sobre caminhos e descaminhos sociais, políticos e culturais da própria comunidade.
Tudo isso depende de um conjunto de projetos que a própria universidade pode e deve oferecer e que, por sua vez, como lembrou -com juízo atilado- o físico Rogério Cerqueira Leite em artigo recente, depende da dimensão não apenas acadêmica, mas intelectual que possa caracterizar os seus dirigentes.
Eis, portanto, a segunda razão deste texto: a crítica à ausência de projetos que respondam a uma idéia amadurecida da universidade, tal como foi expressa no texto de Cerqueira Leite.
O projeto não realizado se chamava, provisoriamente, Projeto Favela. Seu objetivo seria levar alguma coisa da cultura existente na USP, nas áreas de música, teatro e artes plásticas, para um pequeno espaço cultural da favela São Remo. Buscava-se, sobretudo, permitir que a universidade convivesse com uma realidade que ela, em geral, conhecia de modo teórico e distanciado; além disso, mostrar a uma parcela da população (em que se incluíam funcionários da própria USP que moravam na São Remo) o interesse da universidade em ampliar seu público.
O projeto ambicionava desinibir as relações entre universidade e comunidade por meio da experiência sensível e intelectual das artes; encontrar um núcleo em que elas não se vissem como adversárias, mas como participantes de uma mesma experiência.
Havia ainda uma ambição maior: a de, quem sabe, no futuro, criar no morador da favela o hábito de frequentar os espaços culturais da própria USP, de maneira que ele visse na universidade um patrimônio a ser defendido, já que era também seu e não só de uma elite.
Não houve tempo para a realização do projeto, para o qual não era necessário acréscimo nas despesas da universidade: era só uma questão de usar o que já existia (e ainda existe) e de ter -o que é fundamental- diálogo efetivo com as lideranças da própria favela.
Assistindo hoje às tensões entre universidade e comunidade, sinto que o projeto não tenha sido realizado, mesmo agora que, como professor aposentado, nada almejo, em termos de cargos ou prestígio, na universidade.
Quem sabe a atual administração da USP não redescobre o fio da meada e busca no projeto apenas delineado um modo inteligente de conviver com as diferenças culturais? Seria uma bela maneira de, pelo menos, testar a resistência dos discursos teóricos nos quais a universidade é tão pródiga.
João Alexandre Barbosa, 60, é professor aposentado de teoria literária e literatura comparada da USP (Universidade de São Paulo). Foi presidente da Editora da USP (Edusp), diretor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas e pró-reitor de Cultura da USP.



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