São Paulo, Terça-feira, 09 de Março de 1999
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Valores universitários


A universidade tem um enorme papel civilizador a exercer. O culto aos valores humanos é o caminho certo para isso


JACQUES MARCOVITCH

A universidade que todos queremos tem nos valores humanos uma dimensão fundamental. Cada instituição deve agregar ao seu papel pedagógico a obrigação de formar cidadãos críticos. Configurando-se como refúgio de valores, ela poderá oferecer aos estudantes algo mais que um diploma e habilidades profissionais.
Vivemos um tempo violentado pela mais selvagem materialidade -o que explica essa desesperada "corrida para a fé" que se manifesta no Brasil e no mundo, com aspectos benéficos ou preocupantes. Benéficos quando tornam os homens conscientes das suas limitações terrenas; preocupantes quando os empurram para os caminhos do fanatismo. Nesse quadro, a difusão de valores assume importância vital, principalmente no espaço em que se formam as mentalidades.
É importante qualificar esses valores, para que não sejam tomados como preceitos superficiais de "educação moral e cívica", ensinados nos períodos totalitários da vida nacional. Valores não se ensinam como se fossem disciplinas curriculares; isso pressupõe que os mestres sejam virtuosos por definição e os estudantes, apenas aprendizes ou seguidores dos seus padrões éticos.
Esses valores devem ser construídos coletivamente na vida em academia. Quando, por exemplo, nos reunimos na USP para discutir políticas públicas e direcionar nossa competência técnica em favor de soluções mais justas para os problemas nacionais de saúde, emprego ou meio ambiente, estamos praticando os valores da solidariedade.
Valores não são só conceitos abstratos invocados em cerimônias universitárias. O pluralismo, a excelência, a solidariedade e o universalismo devem permear ações concretas, circular nas veias da universidade, garantindo sua existência e sua verdadeira natureza.
A natureza plural da instituição acadêmica oferece ao estudante a observação permanente do conflito das idéias, que é um dos mais apaixonantes fenômenos da vida intelectual. Com os elementos recolhidos nessa observação cotidiana, o jovem constrói livremente seu projeto de vida, desenha seu perfil de cidadão pensante, aprende a compreender a diversidade.
A discriminação, a injustiça, o preconceito e a intolerância, tão presentes na vida em sociedade, têm espaço mais restrito na vida em academia. Isso não se dá porque nascemos melhores do que outros concidadãos, mas em decorrência do convívio respeitoso a que nos habituamos com as mais variadas tendências de pensamento.
Esse não é um quadro difuso em nosso meio universitário. A universidade brasileira, que ainda não atingiu seu primeiro centenário, também padece de imaturidade no que diz respeito ao culto dos valores humanos. Enquanto não incorporar esse ponto à sua missão acadêmica, uma universidade não merecerá por inteiro essa denominação.
A palavra universidade, em sentido largo, não traduz apenas um conjunto de faculdades voltadas para o progresso científico. Ela é também uma escola formadora de agentes críticos, indivíduos capazes de ampliar os horizontes da sociedade em que atuarão.
O empobrecimento da vida cívica na moderna sociedade de consumo, tão lamentado pelos críticos da cultura liberal, assume proporções ainda mais perigosas em países jovens, como o Brasil. Aqui, a escassez de oportunidades cria perigoso espaço para a ambição desmedida, a inveja, a disputa feroz, a falta de coesão social. A universidade, nesse contexto selvagem, tem um enorme papel corretivo e civilizador a exercer. O culto aos valores humanos é o caminho certo para desempenhá-lo.


Jacques Marcovitch, 52, é reitor da USP (Universidade de São Paulo) e autor de "A Universidade (Im)possível" (Editora Futura/Siciliano). E-mail: jmarcovi@usp.br



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