São Paulo, segunda-feira, 09 de julho de 2001

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Construindo uma sociedade mais justa

WANDA ENGEL


É preciso restabelecer a crença na igualdade entre os seres humanos a partir da aceitação das diferenças entre eles


O Brasil se prepara, na 1ª Conferência Nacional Contra o Racismo e a Intolerância, para participar da Conferência Mundial sobre Racismo, promovida pela ONU, que terá lugar em Durban, África do Sul, em agosto.
Lutar contra o racismo e a intolerância só faz sentido no contexto da velha crença da desigualdade entre os homens. Enquanto as sociedades aceitavam e valorizavam direitos naturais diferenciados, a discriminação justificava-se pela própria lógica da desigualdade instituída. Quando falamos em velha crença, nos esquecemos de que essa idéia é bem recente na história.
Ela surge quando da formulação do liberalismo burguês, no alvorecer dos tempos modernos, e dentro do contexto da ascensão dessa classe, fortalecida pela Revolução Comercial.
A Revolução Francesa e a Revolução Industrial formaram o ambiente necessário à divulgação do ideário liberal e do ideário iluminista. A igualdade liberal foi o instrumento utilizado para questionar o poder da nobreza, colocando em cheque a sua superioridade, até então naturalizada. A idéia de que todos nascem iguais cumpriu essa função. Já o iluminismo difundiu a crença na ciência positivista como forma de compreender a realidade natural e social, opondo-se, assim, ao poder da igreja.
Desde o início da implantação do capitalismo, entretanto, consolidaram-se a exploração de mão-de-obra, o escravismo, o neocolonialismo e uma realidade desigual convivendo com um ideal de igualdade. Essa contradição básica, que caracterizou o século 19, foi buscar justificativa nas ciências humanas que nasceram e se oficializaram no período.
As primeiras ciências a serviço da explicação das desigualdades foram as teorias raciais que surgiram na França e na Inglaterra entre 1850 e 1930. Iniciaram-se no campo da medicina, tendo Carnabis como um de seus maiores formuladores. Partindo do princípio da poligenia, Carnabis defendeu a tese de que às diferenças anatômicas existentes entre as raças corresponderiam diferenças fisiológicas e intelectuais.
A antropologia física, por meio da antropometria, veio contribuir com a prova empírica necessária à demonstração de que a raça branca, por ser portadora de caracteres anatômicos correspondentes a "estágios mais avançados de evolução da espécie humana", entre eles maior volume encefálico, seria superior às demais raças. Estavam dadas as "bases científicas" para explicar por que os brancos seriam superiores. Os estudos de psicologia diferencial, de Galton, e a medição da inteligência, de Binet, fariam parte do esforço de provar as diferenças pessoais (superiores ou inferiores) em relação ao intelecto.
Mais próxima na linha do tempo, a década de 1960 representou, nos EUA, o momento mais crucial na luta pelos direitos do negro, quando mais fortemente foi checada a crença nas naturais desigualdades raciais. Aí surgiu a chamada teoria da privação cultural -ou da cultura da pobreza.
Essa teoria tem por base a idéia de que diferentes tipos de privação (econômica, afetiva, cultural, social etc.) determinam o aparecimento de traços de personalidade perpetuados de pai para filho, formando uma "cultura da pobreza", com traços disfuncionais como desconfiança, dependência, resignação e dificuldades de comunicação e de percepção. Tais construções teóricas seriam responsáveis pela concepção e pela divulgação da idéia de que, quer por origem racial, quer por herança genética, quer por origem cultural ou social, haveria seres superiores ou inferiores.
Daí para a construção social do padrão do que a sociedade considera como seres superiores foi um passo. Esse padrão é do homem branco, jovem, rico, saudável, magro, não-portador de deficiências, heterossexual e urbano.
Todos os que se afastam do protótipo estão sujeitos a um processo de inferiorização, de discriminação, de exclusão e de marginalização. O diferente -quanto maior for o número de características a ele associadas- será afetado por um mecanismo no qual o sujeito passa a ser visto gradativamente como inferior, marginal e perigoso.
Ele é vítima da contradição básica entre o ideário igualitário, que teoricamente lhe preserva direitos civis, políticos, sociais e humanos, e uma realidade extremamente desigual, que o discrimina a partir do padrão estabelecido no universo simbólico da sociedade. E esse universo simbólico é extremamente reforçado pelos meios de comunicação.
A luta contra esse monstruoso processo começa pelo próprio resgate do ideário igualitário e pela desconstrução da "ciência da desigualdade". A crença na medição da inteligência, pelo quociente de inteligência, por exemplo, foi tão solidamente arraigada, que só recentemente os avanços da neuropsicologia vieram provar que esses testes na verdade avaliam, de forma precária, apenas a capacidade lógica matemática.
A inteligência, hoje considerada em toda a sua complexidade por teóricos como Goleman (inteligência emocional) e Gardner (inteligência múltipla), não teria como ser medida.
É preciso restabelecer a crença na igualdade entre os seres humanos a partir do reconhecimento e da aceitação das diferenças entre eles. Diferença não significa superioridade ou inferioridade. Essa luta exige, entretanto, convergência entre os discriminados e os excluídos. Não pode ser bandeira apenas do negro, do indígena, da mulher, da criança, do idoso, do portador de deficiência ou do homossexual. É preciso perceber que todos são vítimas da construção histórica da crença de desigualdade entre seres humanos.
Lutar contra a discriminação e a intolerância deve ser tarefa de todos -discriminados ou não- que acreditam na possibilidade da construção de uma sociedade mais justa.


Wanda Engel, 56, é secretária de Estado da Assistência Social do Ministério da Previdência e coordenadora nacional do Projeto Alvorada.



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