São Paulo, sexta-feira, 09 de julho de 2004

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Inquérito policial sem polícia

SAULO RAMOS

Durante os trabalhos da Assembléia Constituinte, participei de muitos debates e sugeri muitas coisas. Acusaram-me de intrometido por não ser parlamentar. Mas eu era consultor-geral da República, com alguma experiência em direito, e me sentia com o dever de colaborar. Achava-me não apenas com a obrigação, mas com o direito de opinar, e por um motivo simples: eu era (e sou) brasileiro e não podia omitir-me no momento em que se escrevia a Lei Maior do meu país. Além de tudo, José Sarney, empenhado em ajudar a Assembléia, por ele convocada, punha todo mundo para trabalhar pela Constituinte.
Consegui algumas coisas boas. Entre elas, convenci nossos constituintes a criar a advocacia pública da União. Já pensaram? O país não tinha advogados para se defender nas questões federais! A função era exercida pelo Ministério Público, instituição da maior importância, mas especializada em direito penal e em fiscalização da lei. Quando surgia uma demanda daquelas complicadas, em que a União era parte, não havia advogado para defendê-la. Um assistente jurídico do ministério envolvido fazia um parecer e mandava para o Ministério Público Federal, que o juntava como defesa e parava por aí. Não tinha tempo para lutar em todos os processos, produzir provas, interrogar testemunhas, requerer perícias, dar duro no juiz, cuidar dos prazos, recorrer, convencer tribunais, enfim, advogar, isto é, conhecer o assunto para defender o cliente. Assim, tenho no meu crédito a criação da Advocacia Geral da União, com o conseqüente afastamento do Ministério Público Federal para cuidar de outras coisas.
Uma das questões cruciais submetidas a intermináveis discussões na Assembléia Constituinte consistiu na proposta de competência para o Ministério Público realizar inquérito criminal diretamente, sem participação da polícia. Foi um Deus-nos-acuda. Ficaram divididos juízes, promotores, delegados de polícia, advogados, todos com suas lideranças pressionando os constituintes, contra e a favor da tese.
Como sempre acontece nesses casos, o legislador procurou uma solução política, isto é, o jeitinho: instituiu, além da óbvia exclusividade para promover a ação penal pública, a competência para o MP instaurar inquérito civil público e promover a respectiva ação (incisos I e III, do art. 129 da Constituição). Complicou, porém, quando, meio na surdina, incluiu a exigência do inciso VIII, limitando, em matéria criminal preparatória, a competência do Ministério Público a requisitar diligências investigatórias e à instauração de inquérito policial, indicados os fundamentos jurídicos de suas manifestações processuais. Aí o constituinte já redigiu com raiva, isto é, não pode o Ministério Público instaurar, mas somente requisitar inquérito. E mais: fundamentadamente.


Tem, o Ministério Público, a competência de apresentar provas. Como apresentá-las sem colhê-las?
Lá no art. 144, o constituinte, ao tratar da segurança pública e da Polícia Federal, atribuiu a esta, com exclusividade, as funções de polícia judiciária da União, isto é, inquérito para instruir ação penal só a polícia pode fazer.
Agora, alguém entendeu que a exclusividade para promover a ação penal pública inclui a atribuição de instaurar o inquérito, por ser inerente àquela competência de agir judicialmente. Contra esse entendimento, alega-se que o constituinte, se quisesse autorizar competência para o inquérito criminal, teria redigido o comando igual ao do inquérito civil público, isto é, expressamente, porque competência tem que ser típica, como ensina Canotilho, ou seja, escrita na lei, ou "competência não se presume", como ensina Maximiliano ("Hermenêutica", pg. 265).
Para explicitar mais ainda, foi editada a lei complementar nº 75, de 1993, cinco anos após a Constituição, que dispõe sobre o estatuto do Ministério Público da União. Incumbências da instituição: "I. instaurar inquérito civil e outros procedimentos administrativos; II. requisitar diligências investigatórias e a instauração de inquérito policial, podendo acompanhá-los e apresentar provas".
Como se vê, a lei complementar obedeceu a Constituição e deixou para o Ministério Público apenas a competência para instaurar inquérito civil, mas, quanto ao policial, é expressa na exigência de requisição à polícia, mesmo porque, acacianamente, se o inquérito é policial, somente pode ser feito pela polícia. Mas tem, o Ministério Público, a competência de apresentar provas. Como apresentá-las sem colhê-las? E pode-se confiar na polícia em todas as partes deste país, quando se sabe que em muitos lugares o crime organizado se infiltrou descaradamente nas polícias desorganizadas? Herdamos, pois, do constituinte de 1988, mais essa alucinante angústia.
A Constituição consagra, como direito individual e fundamental, o devido processo legal (art. 5º, LIV). E no devido processo legal não está o inquérito criminal exclusivamente conduzido pelo Ministério Público. O abacaxi sobrou para o Supremo, que, por certo, encontrará uma interpretação inteligente dentro da melhor disciplina jurídica e da realidade brasileira.
Não será o fim do mundo a prevalência da ordem constitucional e do devido processo legal no deslinde dessa questão. As provas colhidas em inquéritos formalmente irregulares não serão nulas, se produzidas sob jurisdição de autoridade judiciária competente. Podem ser aproveitadas, declarando-se a decisão com efeitos "ex-nunc", e não "ex-tunc". O povão não sabe o que é isso. Mas o Supremo sabe.

José Saulo Pereira Ramos, 75, é advogado. Foi consultor-geral da República e ministro da Justiça (governo Sarney).


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