São Paulo, sexta-feira, 09 de agosto de 2002

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JOSÉ SARNEY

O Diabo ficou bonzinho

O Diabo é o dono do mundo. É audacioso, tem colossal coragem e é capaz de adotar tantas formas e tantas cores que, no milagre do mimetismo, fica irreconhecível.
Na Idade Média, o Diabo teve o apogeu de sua glória. Ele fez tantas e tão boas que foi necessário à igreja criar a Santa Inquisição para combatê-lo e descobrir, pelo relato das bruxas, que há diabo fêmea e diabo macho. Sobre o diabo mulher -dizia o padre Vieira no "Sermão da Degolação de São João Batista", num antifeminismo que hoje o levaria a ser queimado vivo nas praças- não se sabia qual era o mais perigoso: se era a mulher alheia ou mulher própria. Exemplos ele buscava em Eva, como mulher própria que levou Adão ao pecado, ou em Herodíades, cunhada de Herodes, mulher alheia que o levou à desgraça.
O Diabo existe e está solto. Na minha infância, na cidade de São Bento, onde me criei, todas as portas da rua tinham uma cruz de carvão na parte interna para não deixar o Diabo entrar.
Mas não quero falar do Diabo velho, que já está meio caduco. Quero falar dos diabos modernos. O FMI, há duas gerações, era o diabo que mais espantava o Brasil. Sempre aparecia para fazer das suas. Juscelino Kubitschek foi o primeiro a exorcizá-lo. Rompeu com o FMI. As exigências do Fundo eram tantas que ele as considerou impeditivas de um bom governo e mandou o diabo às favas. José Maria Alkmim, ministro da Fazenda, foi à Câmara dos Deputados mostrar a carta de rompimento em que o governo (1958) dizia cobras e lagartos daquele organismo. Carlos Lacerda cobrou com vigor de Alkmim, já que este falava de tudo, menos da carta ao FMI: "Mostre a carta!". Alkmim, como raposa parlamentar, respondeu: "Sob coação, não mostro". E não mostrou. O rompimento de JK com o FMI houve, mas foi secreto.
O FMI, como o diabo da Idade Média, teve o apogeu de sua gloria depois da globalização do mercado financeiro. Assim, ele apareceu na Rússia, na Coréia, em Cingapura, no Brasil, no México e, agora, na Argentina, no Uruguai e, de novo, no Brasil. Em algumas economias, sua intervenção coincide com a sucessão presidencial. Assim foi na Rússia, na Coréia e, hoje, no Brasil.
Em 1998, o FMI salvou o Brasil da quebradeira. Agora, o novo acordo, de US$ 30 bilhões -não eram só US$ 10 bi?-, vai acalmar os mercados e colocar novo ingrediente na sucessão.
O diabo moderno, aquele que tanto medo nos causava, o FMI, ficou bonzinho. Vai ajudar o Brasil. E os candidatos, receosos dos seus poderes, deverão estender-lhe a mão. É que não tínhamos saída. E até a língua solta do O'Neill nos ajudou -na medida de uma reparação efetiva.
Joaquim Nabuco dizia que não era boa educação insultar credores.
O Diabo ofereceu a Cristo o mundo. Disse-lhe, na tentação da montanha, que dava a Cristo a Terra toda desde que Este lhe entregasse a alma. O já citado padre Vieira argumenta: "Se o diabo oferecia o mundo, era porque era dono do mundo". Já o nosso diabo é o dono do dinheiro. Jesus recusou o mundo para preservar a alma.
O diabo FMI está tão bonzinho que mais parece um franciscano. Quem se eleger verá!


José Sarney escreve às sextas-feiras nesta coluna.



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