São Paulo, segunda-feira, 09 de agosto de 2004

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CLAUDIA ANTUNES

Recorrências

A campanha para "resgatar a auto-estima do brasileiro", lançada pela Associação Brasileira de Anunciantes e encampada com fervor pelo governo, tem sido tratada com certo desprezo. Mas tanto os anúncios publicitários quanto a insistência do presidente Lula em falar sobre o assunto apenas atualizam uma questão recorrente, também abordada pelo ex-presidente Fernando Henrique em circunstâncias diferentes, embora com o mesmo propósito -o de unir o país em torno da sua liderança e do seu programa.
Uma busca rápida permite encontrar discursos e entrevistas em que FHC aludiu ao tema, até para defender a autonomia do Banco Central. Poucos torceram o nariz à época, talvez porque a iniciativa partisse de um ex-acadêmico que se dizia avesso a qualquer gesto que pudesse ser considerado "populista". O fato é que os dois presidentes repetem o diagnóstico de que os brasileiros carecem de confiança na capacidade de progresso da nação.
Os países são construções políticas e institucionais cuja identidade (o conteúdo cultural e ideológico dessas construções) é tão mais enraizada e mais firme quanto mais bem-sucedidos forem seus projetos -que em toda parte têm o objetivo expresso e provocam a expectativa última de garantir o bem-estar para a grande maioria das pessoas dentro de suas fronteiras.
É por isso que os americanos, por exemplo, ainda têm tanta confiança no que consideram traços básicos de sua sociedade, como a democracia e a liberdade, mesmo que a prática de seus governos os desminta. Apesar dos antecedentes de Guantánamo e do Afeganistão, Bush e vários comentaristas dos EUA puderam tranqüilamente qualificar a tortura em Abu Ghraib como uma aberração diante dos "valores americanos", um incidente, em suma, "não-americano".
No Brasil, a auto-estima sempre parece pouca -e essa carência pode ser e com freqüência é objeto de manipulação- porque aquele patamar mínimo de bem-estar para a maioria da população não foi alcançado, conseqüência do fato de a soberania popular, base do Estado moderno, nunca ter sido exercida plenamente. O chamado "povo" entrou tarde na vida política, já pelo meio do século passado, e essa trajetória foi interrompida pelo regime de 1964 -quando se pretendeu construir um país forte, mas sem cidadãos, que por isso foi questionado no período posterior.
Na democracia, chegamos a eleger um presidente de origem popular (o que seria uma das causas de símbolos brasileiros terem se tornado moda no exterior), mas o projeto de emancipação social, cuja realização torna algumas nações poderosas, e outras fracas, continua bloqueado. O brasileiro pode não desistir de lutar pela sobrevivência, como diz o lema da campanha publicitária, mas vai deixando de acreditar na coletividade.
 
É demolidor, e vale a pena ler, o documento que analisa as políticas do FMI divulgado na semana passada pelo Ministério da Economia argentino. "Argentina, o FMI e a Crise da Dívida" mostra, ponto por ponto, o fracasso das previsões do Fundo e a estupidez de suas recomendações ao país durante e depois da crise da desvalorização do peso, no final de 2001. O documento pode ser encontrado no endereço eletrônico http://www.mecon.gov.ar


Claudia Antunes é coordenadora da Redação da Sucursal do Rio


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