São Paulo, terça, 9 de setembro de 1997.



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A geração controlada da opinião pública

Os meios de comunicação de massa conseguiram tornar anátema a menção da palavra "socialismo"


FÁBIO KONDER COMPARATO

Na segunda metade do século 16, Étienne de la Boétie, o dileto amigo de Montaigne, formulou no "Discurso da Servidão Voluntária" o magno problema político de todos os tempos: como é possível que a multidão, que tem sempre a seu favor a força do número, se submeta voluntariamente ao governo de um só ou de alguns poucos e se deixe dominar pelos governantes?
Dois séculos depois, David Hume repropôs a questão. "Nada se afigura mais surpreendente aos que consideram os negócios humanos sob um ponto de vista filosófico", escreveu, "do que a facilidade com que os muitos são governados pelos poucos e a submissão implícita com que os homens abrem mão dos próprios sentimentos e paixões a favor dos governantes".
Para ele, esse fato paradoxal só poderia explicar-se pela força da opinião pública: tanto a "opinião de interesse", isto é, o sentimento geral de que os governantes favorecem os interesses do povo, quanto a "opinião de direito", ou seja, a generalizada convicção de que os que governam têm direito a exercer o poder.
Max Weber, no início deste século, desenvolveu mais fundamente essas idéias, introduzindo o conceito de dominação legítima.
Segundo ele, há três tipos ou modelos abstratos de legitimidade política: a tradicional, fundada na longevidade dos costumes e visões do mundo; a carismática, que se irradia da excepcional capacidade de liderança do chefe; e a racional, organizada em torno da legalidade administrativa. Os governos são sempre julgados pelo povo segundo um desses padrões de legitimidade.
Tudo isso é certo, mas os autores clássicos partem todos do pressuposto de que a formação da opinião pública independe da ação dos governantes. Mesmo podendo influenciá-la até certo ponto, eles seriam impotentes para fabricá-la como bem entendessem.
Ora, o extraordinário desenvolvimento das técnicas de propaganda pelos meios de comunicação de massa, no correr deste século, veio desmentir radicalmente esse pressuposto.
Os Estados comunistas e fascistas demonstraram que uma boa técnica de propaganda, por meio da utilização maciça da imprensa, do rádio, da televisão e do cinema, torna perfeitamente possível criar e difundir, no seio do povo, juízos de valor sobre os mais variados assuntos, no interesse do pequeno grupo que exerce a dominação política.
Os líderes capitalistas do pós-guerra aprenderam rapidamente a lição e aperfeiçoaram o sistema. Eles perceberam que o monopólio dos meios de comunicação social podia ficar tranquilamente em suas mãos, pelo efeito combinado da pressão econômica e das concessões administrativas.
Lembrando-se da máxima medieval "in medium virtus", os homens do dinheiro recusaram, nessa matéria, tanto o estatismo quanto o afastamento do Estado. Optaram inteligentemente pela solução mercantil: fizeram-se sócios do poder. Contudo, para ter êxito no condicionamento das massas, era preciso empregar as técnicas corretas. A sociologia contemporânea desvendou-as.
Uma delas é a que McCombs e Shaws descreveram e denominaram, em 1972, "agenda-setting". Verificando o fato óbvio de que o público moderno só toma conhecimento dos fatos políticos, econômicos e sociais pelos meios de comunicação de massa, a classe dominante percebeu que podia selecionar as informações e dar a cada assunto uma importância diferenciada, de acordo com seus interesses de dominação.
Como salientaram aqueles autores, a imprensa, o rádio e a televisão nem sempre conseguem dizer ao público o que ele deve pensar sobre determinada matéria, mas são extremamente eficazes para fixar, na mente do povo, os assuntos sobre os quais é preciso ter opinião formada. As matérias incômodas raramente vêm à tona, e, quando isso acontece, o assunto é rapidamente afogado num mar de outras notícias.
Uma outra técnica de persuasão clandestina é a que Elisabeth Noëlle-Neumann denominou sugestivamente, em estudo de 1974, a "espiral do silêncio". Trata-se do expediente de persuadir o público de que determinadas opiniões são ridículas, ultrapassadas ou já completamente condenadas nos países mais adiantados.
Assim, os meios de comunicação de massa, nos últimos 20 anos, conseguiram tornar anátema, em todo o mundo, a simples menção da palavra "socialismo", a idéia de que a empresa estatal pode ser tão eficaz quanto a empresa privada -ou mais do que ela- em certos setores ou a idéia de que só o Estado, e não a iniciativa privada, é capaz de resolver os grandes problemas sociais da atualidade. Nos debates públicos, muito poucos têm coragem de sustentar tais idéias "politicamente incorretas", que tendem, portanto, a ser sepultadas no silêncio.
Não é preciso grande acuidade de visão para perceber os efeitos devastadores que essas técnicas de propaganda exercem em sociedades em que a maioria da população é de baixa renda, não tem instrução nem espírito crítico.
Tampouco é preciso esforço de análise para entender por que a principal peça do esquema político vigente entre nós é o Ministério das Comunicações, responsável pela mais gorda fatia do programa de privatizações, estimada entre US$ 50 bilhões e US$ 70 bilhões.
Como advertiu sabiamente James Madison, no início da república norte-americana, "um regime popular sem informação popular é um prólogo para a farsa, para a tragédia ou para ambas as coisas". Ora, informação popular, hoje, é sinônimo de democratização dos meios de comunicação de massa, cujos mecanismos devem ser expostos e divulgados.
Mas isso é matéria para outro artigo.
Fábio Konder Comparato, 60, advogado, doutor pela Universidade de Paris (França), é professor-titular da Faculdade de Direito da USP, autor do livro "Para Viver a Democracia" e fundador e diretor da Escola de Governo.





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