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CARLOS HEITOR CONY
Um filho sem mãe
RIO DE JANEIRO - Tinha de
acontecer comigo. Em ida banal a
uma repartição para revalidar um
documento, preenchi um cadastro
que me exigia a filiação. Nunca tive
problemas nesse quesito. Escrevi o
nome dos meus pais como sempre
os escrevi. O funcionário que me
atendeu tirou de uma pasta um outro documento e engrossou:
"Nesta certidão aqui, o nome da
senhora sua mãe é Morais, com "i".
O senhor declara agora que a senhora sua mãe é Moraes, com "e".
Afinal, de quem o senhor é filho?"
Respondi um pouco insultado:
"De Julieta de Moraes Cony. Ou de
Julieta de Morais Cony. Para mim,
sempre deu na mesma".
"Para o senhor, sim, mas para o
Estado, não. Há que decidirmos de
quem o senhor é realmente filho
para que o documento possa seguir
o trâmite legal."
Já tive crises ontológicas a meu
respeito e a respeito da humanidade. Quem somos, de onde viemos,
para onde vamos, o que estamos fazendo neste mundo etc. Esta me
pegou desprevenido, no contrapé.
Passei a vida inteira julgando-me filho de minha mãe, de um velho
tronco familiar de Três Rios, no
norte fluminense.
De repente, o mundo desaba sobre mim. Não posso provar que sou
filho de uma Moraes ou de uma
Morais. É como se não fosse filho de
mãe alguma, nasci de uma proveta
que nem existia no tempo em que
vim ao mundo.
Outro dia, relendo Machado de
Assis, em homenagem ao badalado
centenário de sua morte, dei com
aquele político que fez um discurso
na Câmara e os anais daquela sessão registraram sua fala trocando a
palavra "dúvida" por "dívida".
O sujeito queria destruir o mundo por causa de um "i" no lugar de
um "u". Ameaçou derrubar o governo, acabar com as instituições. Eu
não cheguei a tanto, mas confio no
novo acordo ortográfico, que me
dará a mãe que não tive.
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