São Paulo, terça-feira, 10 de fevereiro de 2004

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ROBERTO MANGABEIRA UNGER

A política do vazio

Dissipa-se a ilusão de que a política de dar tudo para a confiança financeira era só tática de transição. Agora sabemos que é para valer. E que nada será feito para estancar a transferência maciça de riqueza das mãos de trabalhadores e produtores para os bolsos de rentistas.
O governo aposta em crescimento puxado por exportações e bafejado por novo ciclo de liquidez na economia mundial. Essa aposta tem tudo para dar errado. Em primeiro lugar, porque lhe falta base interna. Que crescimento sólido pode haver quando a renda popular continua sob o arrocho mais severo e duradouro de nossa história moderna, quando o juro real permanece superior à taxa média de proveito dos negócios, quando sacrifício fiscal arrasador paga apenas metade dos juros da dívida pública interna e quando não se esboça esforço para equipar, com acesso a crédito, a tecnologia e a conhecimento, a vitalidade empreendedora que persiste no Brasil? Em segundo lugar, porque a recuperação econômica é tão frágil que qualquer trauma externo pode revertê-la. Basta, por exemplo, que o juro suba nos Estados Unidos e que os homens do dinheiro reavaliem mais essa efêmera euforia com "mercados emergentes" para que se instaure a crise. O presidente, porém, está por fora; cercado por assessores que lhe põem na boca versão simplificada de discurso de estudante latino-americano formado em curso de economia nos Estados Unidos na década de 1980, ele mistura Herbert Hoover com Hugo Chávez.
Enquanto isso, alastra-se, em nossa democracia ainda frágil, um vácuo de resistência. Neutralizar adversários, cooptando ou intimidando-os, é a única especialidade praticada com afinco no Palácio. A construção de base política balofa e fisiológica, a conseqüente desmoralização de partidos políticos, a compra bilionária dos favores da mídia, os agrados às Forças Armadas, o plano em marcha para amordaçar os procuradores e amedrontar os juízes, a fusão de fundos de pensão, de bancos públicos e de agências reguladoras em central de negócios político-empresariais -tudo isso faz com que o governo do PT já haja chegado aos limites da legitimidade constitucional. Por isso, o que está em jogo no Brasil hoje não é mais apenas o destino dos interesses do trabalho e da produção, sacrificados no altar de ideário malogrado em todo o mundo. O que está em jogo é a integridade da República.
Não estamos mais no Brasil hoje em circunstância normal de governo e de oposição. Encontra-se o país sob o comando de pessoas vazias de idéias, ávidas de poder e carentes de escrúpulos. Tudo o que é mais característico e fecundo no Brasil -a começar por sua capacidade de dar a volta por cima- vem sendo sufocado. As práticas e as instituições republicanas, que nos asseguram a possibilidade de traduzir em atos a vontade nacional, mudando o rumo do país, estão sendo solapadas.
As correntes políticas que antes governavam o Brasil não têm credibilidade para oferecer aos brasileiros a alternativa por que eles votaram em 2002; é a política delas -repudiada pelo eleitorado- a que o governo do PT optou por radicalizar. O primeiro passo para começar a construir a oposição necessária é reconhecer que ela ainda não existe. O que pode surpreender é a rapidez com que ela se imporá se os que a fundarem souberem dar clareza à inconformidade da nação.


Roberto Mangabeira Unger escreve às terças-feiras nesta coluna.
www.law.harvard.edu/unger


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