São Paulo, sábado, 10 de abril de 2004

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SIM

Por um Ministério Público republicano

CARLOS CARDOSO

A Constituição brasileira de 1988 consagrou a maior declaração de direitos individuais e sociais da história do nosso direito constitucional e um dos desenhos institucionais mais avançados de Ministério Público do mundo. Essa combinação fez dele o mais importante agente estatal de defesa da cidadania. A abrangência e a densidade de conteúdo das suas atribuições projetaram-no como um valioso instrumento a serviço da promoção e defesa das prerrogativas constitucionais dos cidadãos.
A partir de então, promotores de todo o país vêm desenvolvendo, de maneira crescente, a tarefa de transformar em realidade os objetivos subjacentes àqueles novos marcos constitucionais. Qualquer balanço que se faça vai indicar os avanços alcançados nessa direção, consubstanciados em notáveis conquistas proporcionadas ao conjunto da sociedade brasileira pela ação corajosa e independente dos promotores na defesa do interesse público. Talvez seja esse o mais importante fato novo ocorrido nos últimos anos no âmbito das relações institucionais entre o Estado brasileiro e a sua população.
Mas essa trajetória tem encontrado percalços e resistências. Os êxitos obtidos pelas iniciativas dessa instituição contrariaram interesses econômicos e políticos de setores das elites brasileiras que historicamente nunca foram incomodados, disso resultando reações furiosas e ruidosas. É nesse quadro que se devem interpretar as diversas proposições legislativas tendentes a limitar e embaraçar as prerrogativas institucionais do Ministério Público.
Os erros e exageros de alguns de seus membros devem ser coibidos com base na legislação já existente. De maneira nenhuma podem justificar propostas autoritárias, como a "Lei da Mordaça" e outras que implicariam a redução das suas atribuições, notadamente no que diz respeito à luta contra o crime organizado e a corrupção. Nem a ditadura militar, no auge do seu delírio repressor, ousou formular tamanhos disparates. Querem tolher a atuação dos promotores pela suas virtudes, não pelos seus equívocos.
É nesse contexto que surge a proposta constitucional de criar o Conselho Nacional do Ministério Público, à semelhança de idêntica proposição voltada para o Poder Judiciário. Em princípio, não há razão para temer o controle externo de instituições públicas. Os princípios republicanos que informam a organização do Estado brasileiro recomendam a adoção e o aperfeiçoamento de mecanismos de fiscalização de todas as entidades, públicas e privadas, investidas de funções que envolvam o interesse geral da população, isto é, o interesse público. Nesse sentido, justifica-se a instituição do Conselho Nacional do Ministério Público, composto inclusive por representantes de outras instâncias da sociedade e do Estado.
Entretanto é imprescindível que esse controle seja exercido sem interferir, em hipótese nenhuma, na autonomia funcional e administrativa da instituição, sob pena de se incorrer em manifesta inconstitucionalidade.
A estrita observância desses limites implica também afastar qualquer possibilidade de esse novo órgão fiscalizador determinar, por decisão de seus integrantes, a perda do cargo de um membro do Ministério Público, que, em face do princípio constitucional da vitaliciedade, importante garantia para a independência institucional, só o pode perder por força de decisão judicial transitada em julgado, prerrogativa igualmente assegurada aos magistrados.
Esse risco, porém, não está totalmente afastado, pois há no governo federal quem sustente essa atribuição ao CNMP. Se esses setores saírem vitoriosos, essa proposta nascerá morta e desmoralizada, quer pela sua indiscutível inconstitucionalidade, quer pelo viés totalitário que ela estará denotando.
A sociedade brasileira não tolerará uma interferência indevida na instituição a que se atribui a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis. Seria o mesmo que abrir a avenida da insegurança jurídica.
Apenas os princípios democráticos e republicanos devem orientar a formulação de controles fiscalizatórios. Tudo que é público exige transparência e prestação de contas. No caso do Ministério Público, esses controles não podem significar um retrocesso para a democracia brasileira, e sim um impulso estimulador ao seu trabalho profissional, independente, isento e afastado de quaisquer motivações políticas.


Carlos Cardoso de Oliveira Júnior, 49, promotor de Justiça, é assessor especial de Direitos Humanos da Procuradoria Geral de Justiça do Estado de São Paulo.


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