São Paulo, domingo, 10 de novembro de 2002

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

O futuro do Banco Central

ARMÍNIO FRAGA NETO



Estamos diante de uma oportunidade de aprimorar o arcabouço institucional da política monetária no Brasil

O desenvolvimento do Brasil depende da construção de um regime macroeconômico que garanta um ambiente propício à poupança e ao investimento de longo prazo. Isso requer inflação e taxa de juros (real) baixas e previsíveis. Para atingir esses objetivos, o governo dispõe de dois instrumentos principais: políticas monetária e fiscal. Ou, mais especificamente, dispõe da fixação da taxa de juros nominal e do superávit primário do setor público.
Como combinar da melhor forma esses instrumentos e adquirir ao longo do tempo um grau elevado de credibilidade? A resposta é uma especialização das políticas, de forma a eliminar ambiguidades e inconsistências. É consenso hoje no mundo atribuir ao BC o controle da inflação e à Fazenda o controle do endividamento público. Para que isso ocorra de forma crível e sustentável, é necessário construir regimes adequados, que estabeleçam regras compatíveis com o alcance dos objetivos desejados. Na área fiscal, o Brasil conta com a Lei de Responsabilidade Fiscal, que constitui a estrutura jurídico-institucional desejada.
Resta-nos a construção de um arcabouço equivalente à LRF no campo monetário, tema oportunamente relevado pelo governo eleito. A solução, hoje quase universal, é dar ao BC autonomia operacional, isto é, um mandato para perseguir a estabilidade monetária, de acordo com a lei e com a orientação de longo prazo do governo. O mandato tem por objetivo dar à condução da política monetária o horizonte adequado, evitando a tentação de outros objetivos mais imediatos, ou seja, de buscar ganhos de curto prazo por meio de políticas expansionistas insustentáveis.
Para o BC cumprir seu papel, é fundamental que não haja dominância de outros objetivos. Entenda-se por dominância a existência de algum outro objetivo que predomine sobre o objetivo básico de fornecer à sociedade uma âncora nominal. Não pode haver dominância fiscal (usar taxa de juros para reduzir o déficit público), cambial (ter determinada taxa de câmbio como objetivo) ou financeira (tolerar inflação por temer crise financeira). O governo deve definir regimes independentes da política monetária para cada uma dessas áreas.
No caso fiscal, a política orçamentária deve ser tal que não se coloque em questão a saúde financeira do governo a médio e longo prazo. Para tanto, o governo deve se comprometer com superávits primários capazes de manter uma relação dívida/PIB razoável sob hipóteses conservadoras para taxas de juros e crescimento da economia.
Os regimes monetário e fiscal assim definidos formam a base fundamental de um regime macroeconômico eficiente. Um regime fiscal sólido dá amparo ao regime monetário e vice-versa, criando uma situação virtuosa. O ponto é facilmente ilustrado pelo caso de regimes fracos: na época da estagflação no Brasil, a fraqueza da política fiscal alimentava a inflação e esta impedia a construção de um regime fiscal digno do nome.
Nas áreas financeira e cambial, cabe evitar a dominância através do aprimoramento do regime de supervisão financeira e do compromisso com a flutuação cambial, como tem sido feito no Brasil. Certas ações do BC (que não a fixação da taxa de juros de curto prazo) podem ter impacto fiscal relevante. Parece-me recomendável que se definam em lei limites de risco, para essas operações, acima dos quais o BC deva consultar as autoridades fiscais. Apresentei essa proposta em depoimentos no Congresso em junho de 2001.
No campo da supervisão, pela primeira vez em nossa história os bancos federais passaram a ser fiscalizados pelo BC. Essa decisão foi motivada por razões econômicas -evitar os extraordinários prejuízos do passado- e políticas -dar transparência aos custos e benefícios das políticas públicas implantadas pelos bancos federais. Enquanto não se aprimora a lei nš 4.595, que regula o sistema financeiro, é essencial que o governo dê respaldo ao BC nessa missão. Na revisão da lei 4.595, os bancos públicos não deveriam ter tratamento diferenciado no que concerne às questões de supervisão bancária, como ocorre hoje.
Para atingir seu objetivo primordial, é importante que o BC mantenha o foco. Um tema relevante diz respeito ao seu papel nas áreas de concorrência e de defesa do consumidor. Nesse campo, a posição do Banco Central mudou bastante nos últimos anos, tendo sido obtido um consenso com o Ministério da Justiça com relação a importantes reformas.
No que toca à defesa do consumidor, o governo defendeu perante o Supremo Tribunal Federal a aplicação do Código de Defesa do Consumidor ao setor financeiro, mas respeitando, como em outros setores, a formação de preço (isto é, das taxas de juros e outras condições contratuais que são o preço no mercado financeiro). Aguarda-se essa importante decisão do Supremo.
Quanto à boa formação da taxa de juros, cabe ao mercado e ao governo zelar para que isso ocorra em ambiente de concorrência e transparência. Na área da concorrência, estamos propondo a transferência para o Cade (Conselho Administrativo de Defesa Econômica) e demais órgãos do sistema de defesa da concorrência as missões de zelar pela boa conduta, de evitar práticas não-concorrenciais, assim como de analisar os atos de concentração -ressalvados os que, na avaliação do BC, ameacem a higidez do sistema financeiro. Projeto de lei complementar sobre a matéria será encaminhado logo ao Congresso.
Em suma, estamos diante de uma oportunidade de aprimorar o arcabouço institucional da política monetária no Brasil. As reformas aqui mencionadas dariam uma significativa contribuição para superar a crise de confiança que enfrentamos e recolocar o país na trajetória do desenvolvimento.


Armínio Fraga Neto, 45, doutor em economia pela Universidade Princeton (EUA), é presidente do Banco Central do Brasil.


Texto Anterior: Frases


Próximo Texto: Augusto Marzagão: Brasil esperança


Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.