São Paulo, sábado, 11 de janeiro de 2003

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LUCIANO MENDES DE ALMEIDA

Fome e valores

Permanece em nosso povo o clima de expectativa de mudança para melhor. Mesmo diante de aumento de preços nos alimentos, transporte, remédios, gás de cozinha e outros, aguarda-se ainda que políticas sociais venham a curto prazo facilitar a luta cotidiana pelo emprego e por condições dignas de vida.
No entanto, é necessário perceber que, além das tão desejadas medidas promissoras, há algo mais profundo que precisa acontecer. É a mudança de mentalidade. Há, com efeito, alguns modos de pensar e agir que penetraram no inconsciente coletivo, alteram a percepção de valores e induzem a comportamentos que impedem a realização de uma sociedade solidária.
Podemos comparar esse modo de pensar e agir que se difundem cada vez mais à ação perniciosa dos "vírus" que, pouco a pouco, destroem células vitais e acabam por infeccionar o organismo. Não basta nesses casos o uso de remédios paliativos. Requer-se a atuação de antibióticos adequados até debelar a infecção e restituir a saúde ao corpo.
Assim também, no esforço notável que vai sendo realizado em todo o Brasil para erradicar a miséria e a fome, estão sendo aplicadas medidas urgentes, como a distribuição de cestas básicas, o fortalecimento da merenda escolar, a entrega de cartão para adquirir alimentos. Procura-se multiplicar a oferta de empregos e encontrar várias formas para geração de renda.
A esse esforço, aliam-se as campanhas de alfabetização e capacitação ao trabalho. Tudo isso é muito bom. Em breve, haverá frutos positivos de todo esse empenho da sociedade e das instâncias governamentais. Resta, no entanto,o problema dos "vírus" a ser debelado. Temos que retificar valores e garantir critérios que permitam superar na raiz as causas das injustiças sociais e alcançar a necessária mudança de mentalidade. Qual é essa mudança?
Existe uma atração para acumular bens e conservá-los para si com exclusão dos outros. A capitalização de recursos se tornou sempre mais concentrada e menos distributiva. Identifica-se felicidade com a riqueza pessoal e de pequenos grupos, isolando-se dos demais e até ignorando-os. Surgiu, assim, a sociedade da acumulação exagerada de bens materiais gerando enorme desigualdades sociais, com estilo de vida consumista e de desperdício dos recursos da natureza. É essa situação que precisa mudar.
O atual esclarecimento da consciência cívica e dos deveres da cidadania há de sustentar a campanha contra a fome. Parece-me, no entanto, de extrema importância que se aproveite a oportunidade para a "conversão" radical de valores, indispensável para atingir as raízes do mal. O que está em questão é o ideal de vida e a realização plena da pessoa humana.
Precisamos descobrir que os bens espirituais e materiais de cada pessoa têm uma dimensão social. Destinam-se também aos outros. Numa visão cristã e fraterna da sociedade, recebemos os dons de Deus para reparti-los com os irmãos. Compreendemos, então, que promover a melhor distribuição de benefícios e renda não é apenas gesto de boa vontade, mas verdadeira restituição dos bens que se destinam não só a nós, mas aos irmãos, começando pelos mais necessitados.
No esforço da superação da fome, encontra-se, pois, algo muito mais profundo: a mudança de valores. Erradicar o "vírus" da acumulação egoísta dos bens é abrir-se à construção de uma sociedade solidária e fraterna, que tem sua melhor inspiração no Evangelho de Jesus Cristo, cujo mandamento é o amor ao próximo.
Quando vamos aprender que só é feliz quem faz os outros felizes? (Atos,20,35).


D. Luciano Mendes de Almeida escreve aos sábados nesta coluna.


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