São Paulo, domingo, 11 de fevereiro de 2007

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Fome e sede de justiça

CEZAR BRITTO


A OAB intensificará cada vez mais sua participação nos órgãos governamentais e da sociedade civil que definam políticas públicas


SE NECESSÁRIO fosse nomear a carência-síntese da sociedade brasileira, não hesitaria em apontá-la numa única palavra: justiça. Todas as demais mazelas da vida brasileira -exclusão social, analfabetismo, violência urbana, impunidade, descrédito das instituições e infinitas outras- derivam dessa insuficiência.
Não é problema que tenha surgido neste ou no governo anterior -ou mesmo em algum especificamente. É herança cultural que remonta aos primórdios da formação nacional.
Somos um país em que, no dizer de Alceu de Amoroso Lima, o Estado precedeu a nação. Antes mesmo de termos sociedade, já tínhamos Estado e respectivas (e múltiplas) regulações. Nossa primeira organização geopolítica, na seqüência do descobrimento, foram as capitanias hereditárias, onde a vontade do donatário-governante se sobrepunha à lei.
E delas não nos desvinculamos culturalmente, o que certamente inspirou o desejo irônico do poeta Manuel Bandeira de mudar-se para uma Pasárgada imaginária, onde, por ser amigo do rei, teria "a mulher que quero, na cama que escolherei".
Ser amigo do rei, nesse universo distorcido de valores, é a aspiração máxima da cidadania pelo avesso, dando ensejo a que prosperem práticas como nepotismo, tráfico de influência, fisiologismo político e impunidade. O rei -o governante, o caudilho, o coronel, o chefe político- substitui a lei e o Judiciário.
Essa é a herança colonial contra a qual se batem os homens de bem deste país, felizmente encontráveis em todas as instituições e partidos. A OAB, cuja presidência assumi no dia 1º de fevereiro, forjou sua tradição na luta contra tais aberrações culturais.
Cidadania ativa é o antídoto. Pressupõe, no entanto, um país que pratique a justiça, que viva sob sua égide. Não sem razão, em meu discurso de posse, sustentei que nós, os integrantes da cena judiciária -advogados, magistrados e membros do Ministério Público-, precisamos nos submeter a drástica e imediata autocrítica e corrigir procedimentos.
Sabemos que nenhum de nós é isoladamente responsável pela crise de justiça. Mas não podemos negar que é nossa a missão constitucional de fazer da justiça um alimento consumido por todos. Somos os encarregados da punibilidade dos que desviam verbas públicas, dos que se apropriam dos sonhos de igualdade, dos que se alimentam da fome alheia, dos que abusam do poder econômico, dos que fazem tráfico de influência, dos que viciam a vontade das urnas, dos que zombam do próprio Judiciário.
Consola-me saber, porém, que, unidos, podemos melhorar substantivamente a qualidade da prestação jurisdicional no país, reduzindo a carência-síntese do Brasil -e, com ela, o mal-estar geral da nação. Só assim, tornando a Justiça um bem real e efetivo, estaremos em consonância com o estabelecido no artigo 1º da Constituição, que diz que a bandeira da República Federativa do Brasil está fincada no Estado democrático de Direito. Sem Justiça, direito é letra morta, mera manifestação de intenções.
E aí me refiro à Justiça em seu sentido mais palatável: o Poder Judiciário e as políticas públicas de inserção social. Não basta conceder um direito no papel. É preciso levá-lo à prática.
Materializar a justiça social é sinônimo de mobilizar a sociedade por meio da cidadania ativa. Caso contrário, continuaremos a aumentar a descrença no Judiciário e a colecionar leis que não pegam. Agir em busca da justiça é, portanto, palavra de ordem.
Eis porque a OAB intensificará cada vez mais sua participação nos órgãos governamentais e da sociedade civil que definam políticas públicas. Um bom exemplo acaba de ser servido. No dia seguinte à minha posse, tive reunião de trabalho com o ministro da Educação, Fernando Haddad. Acertamos retirar do cardápio da cidadania o estragado prato da mercantilização do ensino jurídico.
O aprendizado da justiça tem nos bancos acadêmicos um forte aliado. Bacharéis malformados resultam no que temos: de um lado, os beneficiários de um ensino de boa qualidade, do outro, uma desesperada multidão frustrada pela não-concretização do sonho de ascensão social pelo saber.
Há muito o que fazer para que o Brasil melhore. Mas, se fizermos nossa parte, poderemos atacar o mal pela raiz. A fome maior que temos é a de justiça. E a sede que sentimos exige ser saciada pela ousadia da ação. Fome e sede de justiça, carências que podem fazer parte do passado brasileiro.

CEZAR BRITTO , 45, é presidente nacional da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil).


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