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O papa da difícil modernidade
CANDIDO MENDES
O papa deveria ou não ter enfrentado o risco da vaia na Universidade La Sapienza?
A crítica européia rachou quanto à reação de Bento 16
O PAPA deveria ou não ter enfrentado o risco da vaia na Universidade La Sapienza (Itália)?
Sua recusa constrangida em falar,
afinal, na instituição mais importante
do ensino leigo na Itália vai ao cerne
do novo e fascinante testemunho
diante da modernidade que Joseph
Ratzinger se impôs como chefe da
igreja sem abandonar o recado militante de pensador. Essa reação vai ao
âmago do nosso tempo, do pontífice
acometido ao enlace dos valores da fé
e da razão.
Distanciamo-nos da mobilização
pelo espetáculo do antecessor, no empenho de Bento 16 em falar de dentro
nas condições contemporâneas, mas,
sobretudo, sobre a coexistência radical com toda a esperança do mundo.
O papa faz sua a marca inovadora
desse testemunho, que afronta o concreto, fora do magistério de um "dixit
urbi et orbi", e seu assento sobre a
presença intemporal da transcendência e seu anúncio fora da história.
O recado novo é o de responder ao
inesperado em que assume todo o risco do jogo sem volta dos pluralismos e
da liberdade de expressão diante de
uma palavra que renunciou a distâncias e liturgias seculares.
A marca profética de Bento 16 estará, talvez, no ter enfrentado, olhos
nos olhos, o mal-estar, como o da reação islâmica ao discurso de Ratisbona, agora repetido ante a eventualidade de uma baderna estudantil ao ir à
praça de universidade tão distinta do
balcão de São Pedro.
Expor-se por inteiro como intelectual à polêmica do seu tempo é o que
cria, no melhor sentido profético, "ex
post", o gesto de respeito ao islã na
mesquita Azul, que supriu todo o espanto de um possível encampar, pelo
papado, da violência de Maomé, incidentemente referida em Ratisbona,
pela voz dos príncipes bizantinos.
O pensador tem o seu lugar próprio
de se manifestar, e é na conferência
ou no intuito de fazê-la que busca o
lugar na audiência do povo de Deus,
independentemente do cristão ou do
crente.
Bento 16 falaria agora no ambiente
laico por excelência, exposto à multiplicidade de correntes de pensamento na lógica contemporânea da comunicação irrestrita. O repúdio a ouvi-la
é expressão limite do confronto nessa
condição pós-moderna, que é a do
protesto na sociedade democrática,
nesse caso expressado pela voz de 67
professores entre mais de 3.000
membros do seu corpo acadêmico.
A crítica européia rachou quanto à
reação de Bento 16 cancelando a ida à
Universidade La Sapienza.
O pontífice preferiu a preservação
do consenso da escuta a entregar-se
ao risco do testemunho do seu verbo
no enfrentamento em que a assuada
exauriria o rito de recusa à palavra e
faria do testemunho a perseverança
da mensagem.
Onde encontra o papa o chão dos
homens, ao enfrentar o dissenso em
veios tão distintos da afirmação da
verdade? Foi da frase polêmica sobre
o islamismo que brotou a palavra definitiva do respeito à outra fé, como da
conversa da Sapienza brotaria o possível desarme da resistência diante de
um pensamento enunciado pela sua
estrita convicção.
Ratzinger apenas adiou o compromisso de comparecer ao campus, com
o texto atual sido lido, "in absentia",
no plenário. Não abdicou da fala no
ambiente conturbado, à marca dos
nossos dias, no caminho de surpresas
e decepções, no seio desse pluralismo
congênito à modernidade.
Não escapa, assim, da liça que escolheu para deixar a marca profética,
além do anúncio e, quiçá, devolver a
contestação mínima à ameaça simbólica. Conteve-se o papa, agora, à entrega frontal, mas não se demite da
presença diante da laicidade radical,
na verdade, concreta, de nosso tempo.
Que poderia ter representado a assunção, desde já, desse cenário novo
que o pontífice escolheu para enlaçar
a ciência e a fé?
A palavra na Sapienza brotaria aos
"ouvidos de ouvir" das nossas aflições
ao lado das certezas do "ângelus" na
praça de São Pedro.
A promessa de ainda vir à universidade aprofunda a encarnação no
mundo da dúvida, da exasperação da
racionalidade ou do direito ao cinismo da desesperança.
Seu recado não passa mais só pelas
encíclicas ou pela voz "ex catedra" ao
sofrer as contradições de seu tempo
para o encontro, sempre, da lição da
eternidade.
CANDIDO MENDES, 79, membro da Academia Brasileira
de Letras e da Comissão de Justiça e Paz, é presidente do
"senior Board" do Conselho Internacional de Ciências Sociais da Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura).
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