São Paulo, segunda-feira, 11 de fevereiro de 2008

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O papa da difícil modernidade

CANDIDO MENDES

O papa deveria ou não ter enfrentado o risco da vaia na Universidade La Sapienza?
A crítica européia rachou quanto à reação de Bento 16

O PAPA deveria ou não ter enfrentado o risco da vaia na Universidade La Sapienza (Itália)?
Sua recusa constrangida em falar, afinal, na instituição mais importante do ensino leigo na Itália vai ao cerne do novo e fascinante testemunho diante da modernidade que Joseph Ratzinger se impôs como chefe da igreja sem abandonar o recado militante de pensador. Essa reação vai ao âmago do nosso tempo, do pontífice acometido ao enlace dos valores da fé e da razão.
Distanciamo-nos da mobilização pelo espetáculo do antecessor, no empenho de Bento 16 em falar de dentro nas condições contemporâneas, mas, sobretudo, sobre a coexistência radical com toda a esperança do mundo.
O papa faz sua a marca inovadora desse testemunho, que afronta o concreto, fora do magistério de um "dixit urbi et orbi", e seu assento sobre a presença intemporal da transcendência e seu anúncio fora da história.
O recado novo é o de responder ao inesperado em que assume todo o risco do jogo sem volta dos pluralismos e da liberdade de expressão diante de uma palavra que renunciou a distâncias e liturgias seculares.
A marca profética de Bento 16 estará, talvez, no ter enfrentado, olhos nos olhos, o mal-estar, como o da reação islâmica ao discurso de Ratisbona, agora repetido ante a eventualidade de uma baderna estudantil ao ir à praça de universidade tão distinta do balcão de São Pedro.
Expor-se por inteiro como intelectual à polêmica do seu tempo é o que cria, no melhor sentido profético, "ex post", o gesto de respeito ao islã na mesquita Azul, que supriu todo o espanto de um possível encampar, pelo papado, da violência de Maomé, incidentemente referida em Ratisbona, pela voz dos príncipes bizantinos.
O pensador tem o seu lugar próprio de se manifestar, e é na conferência ou no intuito de fazê-la que busca o lugar na audiência do povo de Deus, independentemente do cristão ou do crente.
Bento 16 falaria agora no ambiente laico por excelência, exposto à multiplicidade de correntes de pensamento na lógica contemporânea da comunicação irrestrita. O repúdio a ouvi-la é expressão limite do confronto nessa condição pós-moderna, que é a do protesto na sociedade democrática, nesse caso expressado pela voz de 67 professores entre mais de 3.000 membros do seu corpo acadêmico.
A crítica européia rachou quanto à reação de Bento 16 cancelando a ida à Universidade La Sapienza.
O pontífice preferiu a preservação do consenso da escuta a entregar-se ao risco do testemunho do seu verbo no enfrentamento em que a assuada exauriria o rito de recusa à palavra e faria do testemunho a perseverança da mensagem.
Onde encontra o papa o chão dos homens, ao enfrentar o dissenso em veios tão distintos da afirmação da verdade? Foi da frase polêmica sobre o islamismo que brotou a palavra definitiva do respeito à outra fé, como da conversa da Sapienza brotaria o possível desarme da resistência diante de um pensamento enunciado pela sua estrita convicção.
Ratzinger apenas adiou o compromisso de comparecer ao campus, com o texto atual sido lido, "in absentia", no plenário. Não abdicou da fala no ambiente conturbado, à marca dos nossos dias, no caminho de surpresas e decepções, no seio desse pluralismo congênito à modernidade.
Não escapa, assim, da liça que escolheu para deixar a marca profética, além do anúncio e, quiçá, devolver a contestação mínima à ameaça simbólica. Conteve-se o papa, agora, à entrega frontal, mas não se demite da presença diante da laicidade radical, na verdade, concreta, de nosso tempo.
Que poderia ter representado a assunção, desde já, desse cenário novo que o pontífice escolheu para enlaçar a ciência e a fé?
A palavra na Sapienza brotaria aos "ouvidos de ouvir" das nossas aflições ao lado das certezas do "ângelus" na praça de São Pedro.
A promessa de ainda vir à universidade aprofunda a encarnação no mundo da dúvida, da exasperação da racionalidade ou do direito ao cinismo da desesperança. Seu recado não passa mais só pelas encíclicas ou pela voz "ex catedra" ao sofrer as contradições de seu tempo para o encontro, sempre, da lição da eternidade.


CANDIDO MENDES, 79, membro da Academia Brasileira de Letras e da Comissão de Justiça e Paz, é presidente do "senior Board" do Conselho Internacional de Ciências Sociais da Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura).

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