São Paulo, quinta-feira, 11 de março de 2004

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Em prol da reforma política

MARILENA CHAUI

Entre muitas falhas institucionais, as do sistema de representação e do financiamento de campanhas justificam a urgência de uma reforma política.
No final da ditadura, quando o MDB poderia superar a Arena com maioria parlamentar, o problema foi resolvido conseguindo novos parlamentares arenistas, entre outros meios, pela transformação dos territórios em Estados e pela criação de novos Estados com o desmembramento de alguns existentes. A seguir, o sistema partidário e eleitoral levou à distorção da representação tanto pela super-representação dos Estados recém-criados, como pela proliferação de partidos artificiais ou de aluguel.
O resultado tem sido a impossibilidade de o partido vitorioso no Executivo eleger uma maioria parlamentar, ficando às voltas com o chamado "problema da governabilidade". Este acaba levando ou a alianças partidárias artificiais ou, quando tal não ocorre, à distorção de uma prática própria da democracia parlamentar, a negociação entre Executivo e Legislativo (concedo x desde que você conceda y). Passa-se da negociação ao negócio, ou seja, à corrupção por meio da compra de votos parlamentares. A CPI, instrumento essencial da moralidade pública, tem se mostrado inócua nesse ponto porque atinge indivíduos, e não o sistema, o efeito, e não a causa.
Por sua vez, o financiamento privado das campanhas eleitorais acarreta pelo menos três graves improbidades públicas: a) desinformação social , pois candidatos e partidos publicam gastos que não correspondem à realidade; b) segredo, pois candidatos e partidos, à margem de seus programas e compromissos públicos, comprometem-se com interesses privados dos financiadores, favorecendo os economicamente poderosos à custa dos direitos das outras classes sociais; c) possibilidade de enriquecimento ilícito dos que se apropriam privadamente dos fundos de campanha. Além de corrigir essas falhas (e muitas outras), uma reforma política republicana e democrática também terá como efeito mudar a forma da discussão sobre a relação entre ética e política, pois nisso costumamos deslizar para uma atitude paradoxal, porque pré e pós-moderna ao mesmo tempo.


Virtudes e vícios do Estado não são virtudes e vícios privados dos dirigentes e cidadãos


A concepção pré-moderna da política considera o governante não como representante dos governados, mas de um poder mais alto (Deus, a razão, a lei etc.), que lhe confere a soberania como poder de decisão pessoal e único. Para ser digno de governar, o dirigente deve possuir um conjunto de virtudes que atestam seu bom caráter, do qual dependem a paz e a ordem. O governante virtuoso é um espelho no qual os governados devem se refletir, imitando suas virtudes -o espaço público é idêntico ao espaço privado das pessoas de boa conduta, e a corrupção é atribuída ao mau caráter ou aos vícios do dirigente. Por isso criticam-se os vícios do tirano e nunca se examina a tirania como instituição política.
A concepção pós-moderna aceita a submissão da política aos procedimentos da sociedade de consumo e de espetáculo. Torna-se indústria política e dá ao marketing a tarefa de vender a imagem do político e reduzir o cidadão à figura privada do consumidor. Para obter a identificação do consumidor com o produto, o marketing produz a imagem do político enquanto pessoa privada: características corporais, preferências sexuais, culinárias, literárias, esportivas, vida em família, bichos de estimação. A privatização das figuras do político e do cidadão privatiza o espaço público. Por isso a avaliação ética dos governos não possui critérios próprios a uma ética pública e se torna avaliação das virtudes e vícios dos governantes; e, como no caso pré-moderno, a corrupção é atribuída ao mau caráter dos dirigentes, e não às instituições públicas.
A concepção moderna funda-se na distinção entre o público e o privado, portanto na idéia de República, e volta-se às práticas da representação e da participação, logo à idéia de democracia. O exemplo mais contundente da concepção moderna pode ser encontrado na abertura de um texto clássico, o "Tratado Político", de Baruch Espinosa.
Todos os que até então escreveram sobre a política, diz ele, nada trouxeram de útil para a prática devido ao moralismo, que os faz imaginar uma natureza humana racional, virtuosa e perfeita e execrar os seres humanos reais, tidos como viciosos e depravados (porque movidos por sentimentos ou paixões). Tais escritores, "quando querem parecer sumamente éticos, sábios e santos, prodigalizam louvores a uma natureza humana que não existe em parte nenhuma e atacam aquela que realmente existe". Ora, prossegue Espinosa, por natureza, e não por vício, os seres humanos são movidos por paixões, impelidos por inveja, orgulho, cobiça, vingança, maledicência, cada qual querendo que os demais vivam como ele próprio. Mas também são impelidos por paixões de generosidade e misericórdia, amizade e piedade, solidariedade e respeito mútuo. Pretender, portanto, que na política se desfaçam das paixões e ajam seguindo apenas os preceitos da razão "é comprazer-se na ficção".
Por conseguinte um Estado cujo bem-estar, segurança e prosperidade dependam da racionalidade e das virtudes pessoais de alguns dirigentes é "um Estado fadado à ruína". Para haver paz, segurança, bem-estar e prosperidade, "é preciso um ordenamento institucional que obrigue os que administram a República, quer movidos pela razão, quer pela paixão, a não agir de forma desleal ou contrária ao interesse geral". Pouco importam os motivos interiores dos administradores públicos; o que importa é que as instituições os obriguem a bem administrar. Virtudes e vícios do Estado não são virtudes e vícios privados dos dirigentes e cidadãos, mas virtudes públicas, isto é, a qualidade das instituições, ou vícios públicos, isto é, deficiências institucionais. Assim, a crítica moralizante à corrupção cede lugar à crítica cívica das instituições, ou seja, à moralidade pública.
Quando falamos em reforma política, é disso que estamos falando.

Marilena Chaui, 62, é professora de filosofia política e história da filosofia moderna da USP.


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