São Paulo, sexta-feira, 11 de maio de 2007

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

TENDÊNCIAS/DEBATES

A Virada e seu avesso

GILBERTO KASSAB

O confronto aconteceu. Foi lamentável, mas aconteceu. Não é justo, porém, que tenha sido tratado como o assunto principal da Virada

FORMADO EM engenharia e economia, cujo ensino é marcado pelo rigor formal, me encanta aprender sobre jornalismo. Passei a conviver com jornalistas mais intensamente desde que assumi a missão de governar a cidade de São Paulo, sucedendo ao atual governador José Serra. Acho divertidos os ditados que jornalistas mais experientes usam para passar aos mais novos os fundamentos da profissão. "Notícia boa não é notícia", por exemplo, com o sentido de que o leitor só se interessa pelo que sai da rotina. Ou, ainda, "se o cachorro morde o homem, não é notícia; se o homem morde o cachorro, é".
Na política, aprendi desde cedo que o respeito à liberdade de imprensa é um dos fundamentos da democracia. Concordo com o célebre pensamento do terceiro presidente dos EUA, Thomas Jefferson (1743-1826): "Se tivesse que decidir entre governo sem jornais ou jornais sem governo, não hesitaria em escolher o segundo. Mas todos os homens deveriam receber os jornais e serem capazes de lê-los".
Sou consciente de que cabe, no jornalismo, a divergência, como a que me ocorre ao olhar para trás, passados alguns dias, e analisar o que aconteceu de importante em São Paulo no último fim de semana.
A Virada Cultural, evento promovido pela Prefeitura de São Paulo de 5 para 6 de maio, realizou o que a prática jornalística consagrou como notícia: aquilo que sai da rotina, o incomum. Noutras palavras, a Virada foi um acontecimento tão raro como se "o homem mordesse o cachorro".
Durante 24 horas, 3,5 milhões de moradores da capital paulista aproveitaram a oportunidade de assistir, de graça, a 350 eventos em 80 diferentes pontos da cidade. Cantou-se, ouviu-se, dançou-se samba e forró, rock e reggae, rap e seresta. Apresentaram-se artistas como o Ballet Stagium e o percussionista Naná Vasconcelos, a cantora Zélia Duncan e o instrumentista Paulo Moura. Apresentaram-se estrelas do passado, como Dóris Monteiro, Ademilde Fonseca, a Orquestra Tabajara, Ângela Maria e Cauby Peixoto, e da atualidade, como Chico César, Ed Motta, João Bosco, Moraes Moreira e seu filho Davi Moraes. E isso sem contar Alceu Valença tocando sucessos de seu disco de 1977.
Houve apresentações no Vale do Anhangabaú e em Guaianases (a 30 km do centro), no Teatro Municipal e em Parada de Taipas, na praça Dom José Gaspar e nos 26 CEUs, na praça da República e no parque da Juventude (antigo Carandiru). Na quadra da Vai-Vai, João Carlos Martins regeu a Orquestra Bachiana, acompanhada pela bateria da escola de samba -entre outras peças, tocaram o primeiro movimento da "Sinfonia nš 5" de Beethoven. Em um país marcado pela diversidade e pela exclusão cultural, cabe perguntar: isso é notícia ou não?
Entretanto, nas manchetes do dia seguinte, o que obteve mais espaço, em toda a mídia, não foram as 24 horas de epifania oferecidas aos moradores de São Paulo e turistas que vieram à cidade. A manchete coube a um incidente da madrugada do domingo, na praça da Sé, quando se apresentavam os Racionais MC's, um dos mais importantes grupos de rap e hip hop do Brasil. Nenhuma autoridade escamoteou informações sobre o confronto entre policiais e parte da platéia. O confronto aconteceu. Foi lamentável, mas aconteceu.
Não é justo, porém, que tenha sido tratado como o assunto principal da Virada. Na seção de cartas da Folha, no dia 8, o leitor Yelmo Papa lamentou: "É uma pena que a violência ganhe sempre as manchetes e chame mais a atenção do que a paz, a cultura e a diversão. A Virada Cultural teve mais de 300 eventos de música, teatro, dança, circo, etc... A grande imprensa falou disso "en passant".
Já o tumulto causado por vândalos na praça da Sé foi manchete dos jornais, telejornais e rádios".
No mesmo dia, em "O Estado de S. Paulo", o leitor Klaus Capuzz batia na mesma tecla: "Apesar do incidente criado por um pequeno grupo de vândalos que, infelizmente, não sabem tirar proveito desse magnífico projeto da Prefeitura de São Paulo, gostaria de agradecer pelo evento e pedir que a prefeitura não desista de oferecer cultura e lazer nessa proporção, para todos os gostos e idades".
Caro Yelmo, caro Klaus, temos a convicção de que o relevante é a Virada Cultural, e não o seu avesso. Na segunda edição do evento, em 2006, a cidade estava traumatizada pelos ataques do crime organizado. Ainda assim, São Paulo não teve medo e compareceu. Em 2007, a participação do público foi maior ainda. Para 2008, vamos preparar uma maratona cultural melhor, mais variada. A data já está reservada: 26/27 de abril. Enquanto isso, estão todos convidados para o show de desagravo programado para este domingo à noite, na Sé.


GILBERTO KASSAB, 46, é o prefeito de São Paulo.

Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo. debates@uol.com.br

Texto Anterior: Frases

Próximo Texto: Paulo de Mesquita Neto e Fernando Salla: Um ano da crise de maio: nada mudou

Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.