|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
TENDÊNCIAS/DEBATES
Urnas eletrônicas, Abin e Unicamp
ROBERTO ROMANO
Grave preocupação da cidadania, no processo eleitoral que logo
definirá os rumos da República, diz respeito às urnas eletrônicas. Não se trata
de simples problema técnico. Caso não
seja garantido o controle dos procedimentos na apuração dos votos, podemos enfrentar uma nova e desastrosa
crise política.
Num país que viveu boa parte do século 20 sob ditaduras, as autoridades
não têm o direito de abandonar as cautelas éticas. Se ocorrer alguma irregularidade na apuração do pleito, a fé pública receberá um golpe pior do que os
produzidos pelas tristes experiências de
corrupção, censuras, despotismos vários que geraram no povo brasileiro a
descrença na democracia e no Estado de
Direito.
Quando a Unicamp aceitou analisar
as urnas eletrônicas, eu presidia a sua
Comissão de Perícias. Fui consultado
pelo então reitor, dr. Hermano Tavares,
apenas pro forma, pois aquele trabalho
não integrava as atribuições da comissão. Esta última foi instituída para definir normas nas atividades ligadas ao extinto Departamento de Medicina Legal.
Respeitosamente, lembrei ao reitor os
riscos do novo empreendimento. A
Unicamp era chamada a fornecer um
aval técnico, positivo ou negativo, em
setor político explosivo, nas próximas e
tensas disputas majoritárias. Pedi uma
nota advertindo que a comissão por
mim dirigida nada tinha a ver com a peritagem das urnas.
A solicitação foi feita diretamente ao
reitor, na presença do chefe-de-gabinete. A proximidade de nomes e funções,
argumentei, traria equívocos indesejáveis entre o que fazia a Comissão de Perícias e os laudos sobre as urnas.
Após o dispêndio de muito tempo para equacionar gravíssimos problemas
na sua área própria, a comissão finalizava os seus trabalhos, tendo defendido a
Unicamp, sobretudo no setor médico,
caluniado por grupos que atribuíam ao
todo acadêmico os erros cometidos por
ínfima parcela de professores.
A nota não foi publicada. Restou espaço para o equívoco temido por mim. A
Unicamp realizou a sua perícia com a
competência acadêmica de sempre. E
fez recomendações graves para o uso de
códigos e chaves protetoras do sigilo
eleitoral. Honrando o rigor ético e científico, os nossos técnicos perceberam
consequências que envolvem problemas axiológicos na condução do caso. E
fizeram recomendações cautelares, não
acatadas pela Justiça Eleitoral.
Num país que viveu boa parte do século 20 sob ditaduras, as autoridades não podem abandonar as cautelas éticas
|
Esse ponto já evidencia um perigo para a Unicamp: seu laudo é utilizado como garantia de fiabilidade das urnas
eletrônicas, mas suas recomendações
sobre a segurança na manipulação das
mesmas são ignoradas.
Devido ao meu trabalho de pesquisa
em ética e filosofia política e às funções
que exerci, mantenho intenso contato
com magistrados, promotores, procuradores federais e outros encarregados
da aplicação da lei em nosso país. Muitos deles agora me procuram para indagar sobre a minha responsabilidade e a
da antiga Comissão de Perícias no trato
estabelecido com a Justiça Eleitoral para
a peritagem das urnas.
A todos, por falta da nota que deveria
ter sido publicada pela antiga reitoria,
agora esclareço: nem a comissão nem
eu respondemos pelo convênio com a
Justiça Eleitoral para a peritagem das
urnas. Ele é de exclusiva responsabilidade da reitoria mencionada.
Pessoalmente, tenho receios sobre o
que pode ocorrer. Há pouco tempo, a
Folha publicou documentos da Abin
(Agência Brasileira de Inteligência) em
que os seus agentes confessam que podem "arranhar direitos" da cidadania.
A mesma agência tem exercido tarefas
não compatíveis com a intimidade e os
direitos constitucionais dos indivíduos.
Por enquanto, a integralidade de seus
quadros não goza da confiança irrestrita do mundo político, tanto entre eleitores quanto entre lideranças.
Integro o número dos que defendem a
existência da Abin, tendo em vista a inserção brasileira nas lutas internacionais, do comércio à produção científica
e tecnológica. Mas considero que semelhante organismo ainda não provou
isenção política, reconhecida por todos
os setores do país. A imprudência do
seu uso para manter o sigilo das urnas é
manifesta.
A imprensa cumpre seu papel e noticia os fatos. A população precisa se manifestar. As autoridades democráticas,
que respeitam o Estado de Direito, devem explicações à nação.
Roberto Romano, 56, é professor titular de ética e filosofia política da Unicamp. Foi presidente
da Comissão de Perícias da universidade.
Texto Anterior: Frases
Próximo Texto: Marcos Galvão: A volta da interdependência Índice
|