São Paulo, terça-feira, 11 de junho de 2002

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TENDÊNCIAS/DEBATES

A volta da interdependência

MARCOS GALVÃO

"O ano de 2001 poderá passar a ser visto como o ano em que duas décadas de progresso praticamente ininterrupto do capitalismo deram lugar a algo bem mais ambíguo e incerto". A avaliação é da insuspeita "The Economist" (18/5), em análise na qual destaca a desvalorização de ativos no mercado financeiro dos EUA e problemas nas economias de outras regiões do mundo.
Nada do triunfalismo que marcou a década passada, tempos descritos e explicados, louvados e criticados, em juízos e textos nos quais a palavra globalização aparece como um conceito com 1.001 utilidades.
Em 1997, ao apresentar trabalho sobre o tema ("Globalização: arautos, céticos e críticos", revista "Política Externa", vol. 6, nš 4 e vol. 7, nš 1), observei que, no sentido corrente, a globalização não tem sujeito definido, a não ser, vagamente, o próprio globo. Daí o seu caráter determinista e totalizante: é algo que vem da Terra, que brota espontaneamente do curso da história, das forças de mercado, dos avanços tecnológicos.
O conceito vem quase invariavelmente associado à noção de que, primeiro, o econômico determina o político; e segundo, o global determina o nacional. Em ambos os casos, está presente a idéia de indução e/ou constrangimento no processo de tomada de decisões. Por isso, a adoção inquestionada do conceito, como se o mesmo se referisse sempre a fatos concretos, todos bem definidos historicamente, acaba por atingir a disposição e a capacidade de atuar sobre a realidade. A falta de ânimo crítico alimenta o fatalismo.


Volto a sustentar que podemos perfeitamente viver sem a palavra globalização. Estaremos melhor sem ela


Ao defender tal posição em alguns encontros acadêmicos, ouvi o contra-argumento de que a discussão conceitual é irrelevante, pois existe uma globalização real com a qual temos de lidar.
Não me convenço dessa irrelevância. Aproveitando o estado de espírito criado pelas dificuldades e incongruências na economia mundial e pelos desdobramentos dos atentados de 11 de setembro, volto a sustentar que podemos perfeitamente viver sem a palavra globalização. Estaremos melhor sem ela.
E não será preciso inventar nenhum neologismo para substituí-la. Bastará voltar um pouco atrás no tempo e resgatar o conceito que marcou uma outra era, mas se referia, basicamente, aos mesmos processos descritos pela palavra da moda contemporânea.
Sai a globalização, volta a interdependência.
Que temos a ganhar com essa troca? Muita coisa. Diferentemente da globalização, interdependência sugere mutualidade e sujeitos definidos, que "dependem" uns dos outros e agem de modo próprio, embora afetados pelos demais. Há relações de mão dupla. A interdependência (expressão, diz-se, cunhada por Robert Cooper em 1968) nasceu e ganhou corpo quando os países desenvolvidos se viram obrigados a tomar consciência de sua vulnerabilidade e da integração de seus destinos aos do resto da humanidade -Guerra do Vietnã, crises do petróleo, ameaças ao meio ambiente. Já o termo globalização surge nos anos 90, quando o "centro" passa a se sentir invulnerável (antes dos ataques de 11/9) e hegemônico.
A globalização aparece, assim, como algo que flui do centro para a periferia e sugere inevitabilidade e ajustamento passivo. A interdependência, por sua vez, espelha o reconhecimento pelas sociedades mais prósperas -tardio e cíclico, infelizmente- de que Norte e Sul dividem um mesmo espaço e se influenciam mutuamente, embora não simetricamente.
O defeito maior do conceito da interdependência, aliás, reside justamente no fato de que o prefixo "inter" pareceria indicar uma simetria não correspondente à realidade. Existem, é claro, abissais diferenças em termos de capacidade de influência e resistência, de sensibilidade e vulnerabilidade a pressões e limitações externas. Dessas diferenças nascem relações de poder que são dados-chave da vida internacional.
Robert Keohane e Joseph Nye resolveram esse dilema no clássico "Power and Interdependence" (1977). Assinalaram que interdependência significa reciprocidade, mas não necessariamente simetria, e propuseram a fórmula da "interdependência assimétrica" e, ainda, da "interdependência complexa", que considera a multiplicidade de atores e canais de comunicação entre as sociedades nacionais.
De qualquer forma, com ou sem adjetivos, o conceito da interdependência parece mais útil e benéfico do que o da globalização -sobretudo, mas não somente, para os países em desenvolvimento.
Sem desconhecer as grandes mudanças ocorridas desde os anos 60 e 70 do século 20, tratemos, pois, de resgatar a idéia da interdependência. Não apenas como elemento de discurso e ferramenta analítica mais atual do que nunca, mas também como postura diante de um mundo por cuja transformação o Brasil há muito se orgulha de lutar.


Marcos Bezerra Abbott Galvão, 43, diplomata, mestre em relações internacionais e ex-professor do Instituto Rio Branco, é ministro-conselheiro da Embaixada do Brasil em Washington. Escreve este artigo em caráter estritamente pessoal.



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