São Paulo, quinta-feira, 11 de julho de 2002

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Intervenção federal no Espírito Santo

BELISÁRIO DOS SANTOS JR., FLAVIA PIOVESAN e LUIS ROBERTO BARROSO

Na qualidade de relatores do CDDPH (Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana) para o caso do pedido de intervenção federal no Espírito Santo, formulado pelo Conselho Federal da OAB, foi com extrema perplexidade que reagimos ao arquivamento da representação pelo procurador-geral da República, em 8 de julho.
Em sessão do conselho realizada em 5 de julho, o relatório do caso foi amplamente debatido e aprovado por unanimidade. Estavam presentes o então ministro Miguel Reale Jr., o secretário de Estado de Direitos Humanos, Paulo Sérgio Pinheiro, representantes da Associação Brasileira de Imprensa, da Associação Brasileira de Educação, do Ministério das Relações Exteriores, da Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados e do próprio Ministério Público Federal -inclusive o chefe da instituição, o procurador-geral da República.
A conclusão do relatório era apenas uma: restavam cabalmente caracterizados os pressupostos constitucionais para a intervenção federal no Estado do Espírito Santo (no Poder Executivo e na Presidência da Assembléia Legislativa), seja em face da violação aos direitos da pessoa humana, seja em virtude do grave comprometimento da ordem pública (nos estritos termos do artigo 34, incisos III e VII da Constituição Federal).
Desde 1994, acumula-se no Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana uma farta e densa documentação a respeito da gravidade do caso. Vários relatórios haviam sido elaborados, pela CPI do Narcotráfico, por comissão e subcomissão do CDDPH, pelo Ministério Público Federal, pelo Ministério Público Estadual, pela Polícia Federal. Dossiês e depoimentos foram colhidos de entidades de direitos humanos e de autoridades estaduais e federais.
A diversidade de fontes não impedia o diagnóstico unânime: a persistência de uma criminalidade violenta e organizada naquele Estado, que se prolonga, por mais de uma década, sob o signo da impunidade; a percepção de que se encontra infiltrada em diferentes instituições estaduais; a existência de padrão grave e sistemático de violação aos direitos da pessoa humana, em virtude de dezenas de execuções sumárias e arbitrárias, bem como de ameaças de morte (endereçadas a membros do Ministério Público, Judiciário, Legislativo, Executivo e sociedade civil), em relação às quais prevalece, como regra, a impunidade; e a impossibilidade, incapacidade ou omissão das autoridades estaduais.


Nossa recomendação pela intervenção se deu com base na estrita legalidade; uma intervenção a favor, e não contra o Estado


Há um dado subjetivo relevante a considerar nessa questão: a quase totalidade das pessoas contatadas pelo CDDPH nas últimas semanas, protegidas pela informalidade e pelo sigilo, revelaram o medo intenso, o descontrole da situação e a sensação de desamparo ante a prevalência do crime, da impunidade, da impotência ou acobertamento por parte das autoridades competentes. Há praticamente consenso, a despeito do temor de manifestá-lo abertamente, de que o chefe do Executivo perdeu a capacidade de liderar o Estado e de que o crime organizado está infiltrado no Legislativo.
A população do Espírito Santo é vítima de um pacto de medo, silêncio e cumplicidade, que favorece a criminalidade organizada e violenta, oprimindo todos os que tentam enfrentá-la.
A possibilidade de intervenção federal para a proteção dos direitos humanos é uma inovação trazida pela Constituição de 1988. O caso do Espírito Santo era exemplar e emblemático para inaugurar a aplicação da nova regra constitucional. Nenhuma observação atenta deixará de constatar o quadro dramático de violação dos direitos humanos que lá se desenhou. Nem o grave comprometimento da ordem pública.
A alegação do Conselho Federal da OAB, de que as autoridades públicas sofriam um processo de intimidação e de cooptação, pareceu-nos confirmada pelos fatos. Como consequência, a impunidade passou a alimentar novas violações, em um perverso ciclo vicioso.
O CDDPH ouviu um pedido de socorro vindo de múltiplas direções. Entidades, organizações e pessoas dos mais variados credos, anseios, ideologias e interesses, que vão da arquidiocese à própria Procuradoria da República no Estado, compartilham do sentimento de que as instituições estaduais perderam a capacidade de reagir. Nossa recomendação pela intervenção federal se deu com base na estrita legalidade constitucional. Uma intervenção a favor, e não contra o Estado.
O que se passou entre a aprovação unânime da intervenção no CDDPH e o arquivamento da representação pelo procurador-geral a história vai se encarregar de contar. Lamentamos pela decepção das pessoas que confiaram no conselho, sobretudo aquelas que arriscaram a vida e continuam sob risco.
Em nossa indignada perplexidade, entendemos que, nesse episódio do arquivamento da esperança e da perspectiva de restauração da legalidade e da observância e respeito aos direitos humanos naquele Estado, só há a festejar a firmeza ética do ministro Miguel Reale Jr. A preocupação com os valores permanentes e com os direitos humanos, acima das contingências do calendário eleitoral, é um exemplo de integridade a ser admirado e seguido. Reale tornou-se ex-Ministro para não conceder o que não se deve conceder.


Belisário dos Santos Jr., 54, é advogado. Foi secretário da Justiça do Estado de São Paulo (governo Mário Covas). Flavia Piovesan, 33, é professora-doutora de direito constitucional e direitos humanos da PUC-SP. Foi professora visitante do Programa de Direitos Humanos da Escola de Direito da Universidade Harvard, nos EUA (1995 e 2000). Luis Roberto Barroso, 44, advogado, mestre em direito pela Escola de Direito da Universidade Yale (EUA), é professor titular de direito constitucional da Uerj. Os autores são membros do CDDPH (Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana).



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