São Paulo, quinta-feira, 11 de julho de 2002

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Os meios (de comunicação) justificam os fins?

JOSÉ PAULO CAVALCANTI FILHO

O futuro dos meios de comunicação, no Brasil, deve caminhar em dois sentidos aparentemente contraditórios. De um lado, fortalecendo os grupos brasileiros, em uma comunicação crescentemente mundializada. De outro, fazendo com que atuem como instrumento do interesse coletivo.
Dizendo mais simplesmente, esse futuro corresponderá ao consenso possível entre soberania e democracia. Mas será possível conciliar interesses que, em princípio, têm lógicas excludentes? -eis a questão.
Há grandes mudanças em curso. "Unstoppables" (irreversíveis), segundo curiosa definição de Nicholas Negroponte, co-fundador do Laboratório de Mídia do Instituto de Tecnologia de Massachusetts. Produzir conteúdos e transmitir esses conteúdos são atividades que começam a se fundir. Dois caminhos reduzidos a um falso paradoxo. Muitos imaginaram que uma estratégia de pequenos avanços tecnológicos poderia enfrentar o peso do poder econômico. Não será assim, já se vê. Tecnologia e dinheiro tendem a trabalhar juntos. As culturas regionais correm o risco de sucumbir, ante a pasteurização da cultura "horizontal" -para usar expressão de Lawrence Friedman.
Em futuro próximo, tenderão a se fundir os veículos em que hoje circula toda essa informação: televisão, jornal, computador, jogos eletrônicos, rádio e seus instrumentos de conexão. Esse futuro poderá, inclusive, envolver dispositivos que se articulariam para atender aos desejos dos seres humanos -sem envolver, nessa comunicação, os próprios seres humanos. Em países periféricos, como o Brasil, o ritmo dessas mudanças será mais lento. Bom para nós. Mas é preciso não desperdiçar tempo.
Os capitéis dos templos romanos eram povoados por figuras animais, saídas das páginas do Apocalipse. Expressando-se neles receios, remorsos e virtudes. O bestiário nietzschiano, por exemplo, baseava na moral a busca de poder que eleva o homem. Representada no camelo, com a moral pesada do eu devo; no menino, com a moral simples do eu sou; e no leão, com o moral onipotente do eu quero. A esse zoológico ético devendo-se juntar, agora, os meios de comunicação, que poderiam ser representados pelo camaleão, com a moral ambígua do eu me adapto.


Vivemos, no Brasil de hoje, uma crise da esperança. Um estado interior de desalento, de fatalismo histórico


Ocorre que os grandes grupos nacionais, em comparação com gigantes mundiais de comunicação, reduzem-se a grupos apenas médios. Até menos que isso. Nem sempre essa adaptação será suficiente. A combinação camaleônica de engenho e arte, de competência com reserva de mercado, de voluntarismo com boas intenções em nenhum país vem conseguindo evitar os efeitos predatórios da competição.
A esse cenário de incertezas respondeu o Congresso Nacional com a permissão de que parcela (minoritária) do capital de empresas nacionais possa pertencer a grandes grupos estrangeiros. Uma solução conveniente, no curto prazo. Mas que pode acabar se revelando mortal, ao passar dos anos.
Fortalecer esses grupos deverá ser um objetivo nacional. Todos os países fazem isso, com os seus. Mas a tese, quando sustentada em bases simplistas, pode acabar sendo apenas instrumento para concentração de poder nessas empresas. Ruim. Ou sagração de um compadrio deletério entre corporações de comunicação e elites políticas incrustadas no governo. Pior. Devendo um modelo efetivamente comprometido com a democracia, para ser politicamente defensável, compreender que esses veículos devem estar à disposição do bem comum. Que ele só será bom, para os meios de comunicação, se for bom também para os brasileiros.
A definição desse modelo, tendo em conta tantos riscos, não pode ficar em mãos apenas do empresariado, que tenderia a priorizar seus lucros. Nem apenas em mãos dos governos, que poderiam dar-lhe um sentido subalterno. Inclusive eleitoreiro. Nesse entendimento, a Constituição criou, em 1988, e o Congresso Nacional afinal instalou, 14 anos depois, uma entidade que tem esse perfil. Como grande número de outros países. O Conselho de Comunicação Social -com patronato e sindicalismo interagindo organicamente com a sociedade civil. Pode dar certo. Ou não, claro.
Acredito, sinceramente, que vai dar. Os trabalhos inclusive já começaram, havendo estudos em curso sobre a digitalização, como realidade técnica, e sobre a relevante questão da regionalização da programação.
Vivemos, no Brasil de hoje, uma crise da esperança. Um estado interior de desalento, de fatalismo histórico, da aceitação resignada de um destino medíocre -que Umberto Galimberti chama de "prazer do medo". Poucos acreditam que é possível mudar. Poucos querem verdadeiramente mudar. O maior desafio de interferir nessa realidade, para além de todas as dificuldades objetivas, tem então uma dimensão íntima. Um ato de fé. E resolve-se, dando forma a essa fé, no compromisso de pensar o futuro, com os olhos no futuro.


José Paulo Cavalcanti Filho, 54, advogado em Recife, é presidente do Conselho de Comunicação Social do Congresso Nacional. Foi presidente do Cade (Conselho Administrativo de Defesa Econômica) e da Empresa Brasileira de Notícias, além de secretário-geral do Ministério da Justiça (governo Sarney).



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