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São Paulo, segunda-feira, 11 de agosto de 2003

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BORIS FAUSTO

1964 e o quadro atual

Diante do quadro atual, políticos de várias tendências têm aludido à conjuntura de 1964, que desembocou no regime militar. É significativo que isso aconteça em um momento de tensão. Um olhar comparativo a episódios do passado não constitui novidade. Durante os anos de regime democrático, entre 1945 e 1964, sobretudo nos períodos de crise, o deputado Café Filho, que foi também vice-presidente da República, terminava seus discursos com a frase: "Lembrai-vos de 37!".
Parafraseando Café Filho, seria o caso de dizer hoje: lembrai-vos de 64? Tudo indica que não se pensarmos na reprodução pura e simples de um regime autoritário. Para marcar diferenças, lembremos a circunstância de que o contexto internacional dos anos 60 e dos dias atuais são inteiramente diversos. Naquela época, no âmbito da Guerra Fria e da Revolução Cubana, o governo dos Estados Unidos tratou de evitar a todo custo novas revoluções na América Latina, mesmo que para tanto fosse necessário promover a implantação de ditaduras de direita, inoculando uma peculiar ideologia de segurança, ensinando métodos de tortura, financiando grupos de conspiradores etc.. Jango indiretamente e Allende diretamente foram as vítimas principais desse pragmatismo sem princípios.
No plano interno, a manipulação da democracia, em meio a uma crise que se avolumava, não se restringia apenas à direita -como é tradicional na história do Brasil-, mas a quase todos os atores políticos, dos populistas aos comunistas. Democracia era apenas uma ferramenta útil em certos momentos, inconveniente em outros, a pretexto de se buscar um objetivo social maior. Exemplo? A reforma agrária na lei ou na marra.
Fator final decisivo foi a presença das Forças Armadas no jogo político, o que acabou resultando na implantação do regime autoritário quando a ruptura da hierarquia institucional se tornou flagrante. O respeito à lei cedeu à desordem, e o majoritário centro militar pendeu irremediavelmente para a direita.
Nada disso ocorre hoje. Se o quadro internacional é complicado, já não imperam as determinações da Guerra Fria. Um consenso básico se formou em amplos setores sociais, guardadas as desvairadas exceções, no sentido de que o regime democrático é um bem a ser preservado, significando o respeito à soberania popular, ao sistema legal e à liberdade de expressão. As Forças Armadas enquadraram-se em sua missão constitucional e não há sinais de que dela venham a se desviar.
Todas essas diferenças indicam o quanto avançamos nestes últimos 40 anos. Podemos então excluir o retrocesso? Pensado como repetição dos cenários de 1937 ou de 1964, creio que sim. Mas o país tem carências e problemas suficientes para que possamos nos embalar em um quadro de manutenção do regime democrático imune a ameaças.
Nem só pela via do golpe a democracia pode ser corroída. Há outro caminho, que passa pelo desrespeito às instituições, pela perda da legitimidade governamental e pela multiplicação de conflitos que, inerentes à democracia, não constituem, entretanto, seu marco definidor. Quem garante que estamos livres disso?


Boris Fausto escreve às segundas-feiras nesta coluna.


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