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ROBERTO MANGABEIRA UNGER
Uma vida humana
Cada um de nós nasce enquadrado. Acordamos do nada e nos encontramos jogados dentro de uma
classe, de uma raça, de uma nação, de
uma cultura, de uma época. Nunca
mais conseguimos nos desvencilhar
completamente desse enquadramento. Ele nos faz o que somos.
Mas não tudo o que somos. O indivíduo sente e sabe também ser mais do
que essa situação ao mesmo tempo
definidora e acidental. Ela nos quer
aprisionar num destino específico.
Contra este rebela-se, em cada pessoa,
o espírito, que se reconhece como infinito acorrentado pelo finito. E tudo o
que quer o espírito é encontrar uma
moradia no mundo que lhe faça justiça, respeitando-lhe a vocação para
transgredir e transcender. Por isso, as
raízes de um ser humano deitam mais
no futuro do que no passado.
Entretanto o indivíduo cedo precisa
abandonar a idéia de ser tudo para
que possa ser alguém. Escolhendo e
abrindo um caminho ou aceitando o
caminho que lhe é imposto, ele se mutila. Suprime muitas vidas possíveis
para construir uma vida real. Essa
mutilação é o preço de qualquer engajamento fecundo. Para que ela não
nos desumanize, temos de continuar a
senti-la: a dor no ponto da amputação
e os movimentos-fantasmas dos
membros que cortamos fora. Precisamos imaginar a experiência das pessoas que poderíamos ter sido.
Depois, já mutilados e lutando, vemo-nos novamente presos dentro de
uma posição que, por melhor que seja,
ainda não faz jus àquele espírito dentro de cada pessoa que é o infinito preso no finito. Rendendo-nos, por descrença e desesperança, a essa circunstância, começamos a morrer. Uma
múmia se vai formando em volta de
cada um de nós. Para continuar a viver até morrer de uma só vez, em vez
de morrer muitas vezes e aos poucos,
temos de romper a múmia de dentro
para fora. A única maneira de fazê-lo é
nos desproteger, provocando embates
que nos devolvam à condição de incerteza e abertura que abandonamos
quando aceitamos nos mutilar.
É do hábito de imaginar como outros sofrem a mesma trajetória que
surge a compaixão. Aliada ao interesse prático, ela nos permite cooperar
no enfrentamento das condições que
tornam o mundo inóspito ao espírito.
E é para torná-lo mais hospitaleiro ao
espírito que precisamos democratizar
sociedades e reinventar instituições.
Temos de desrespeitar e reconstruir as
estruturas para poder respeitar e divinizar as pessoas.
Vivemos, porém, em tempo biográfico, não em tempo histórico. Precisamos de soluções que nos atendam no
espaço das vidas que temos para viver.
Qualquer construção institucional
precisa, para avançar, beber na seiva
de frustrações e aspirações pessoais.
Uma doçura gratuita, calor misterioso, já une o Brasil. Será que nasce da
sabedoria a respeito das coisas mais
importantes? A maioria dos brasileiros parece saber, instintivamente, a
verdade sobre o drama do espírito
-tudo que eu trabalhei tão penosa e
tardiamente para descobrir. Não conseguimos, porém, passar da intuição
da realidade existencial à imaginação
das possibilidades coletivas. Ainda
nos faltam clareza sobre um rumo para o país e confiança em nossa capacidade para desbravá-lo. Desiludidos da
vida pública, temos de passar pela desilusão da desilusão e nos fazermos
profetas de nossa própria grandeza.
Roberto Mangabeira Unger escreve às terças-feiras nesta coluna.
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