São Paulo, terça-feira, 11 de setembro de 2001

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ROBERTO MANGABEIRA UNGER

Uma vida humana

Cada um de nós nasce enquadrado. Acordamos do nada e nos encontramos jogados dentro de uma classe, de uma raça, de uma nação, de uma cultura, de uma época. Nunca mais conseguimos nos desvencilhar completamente desse enquadramento. Ele nos faz o que somos.
Mas não tudo o que somos. O indivíduo sente e sabe também ser mais do que essa situação ao mesmo tempo definidora e acidental. Ela nos quer aprisionar num destino específico. Contra este rebela-se, em cada pessoa, o espírito, que se reconhece como infinito acorrentado pelo finito. E tudo o que quer o espírito é encontrar uma moradia no mundo que lhe faça justiça, respeitando-lhe a vocação para transgredir e transcender. Por isso, as raízes de um ser humano deitam mais no futuro do que no passado.
Entretanto o indivíduo cedo precisa abandonar a idéia de ser tudo para que possa ser alguém. Escolhendo e abrindo um caminho ou aceitando o caminho que lhe é imposto, ele se mutila. Suprime muitas vidas possíveis para construir uma vida real. Essa mutilação é o preço de qualquer engajamento fecundo. Para que ela não nos desumanize, temos de continuar a senti-la: a dor no ponto da amputação e os movimentos-fantasmas dos membros que cortamos fora. Precisamos imaginar a experiência das pessoas que poderíamos ter sido.
Depois, já mutilados e lutando, vemo-nos novamente presos dentro de uma posição que, por melhor que seja, ainda não faz jus àquele espírito dentro de cada pessoa que é o infinito preso no finito. Rendendo-nos, por descrença e desesperança, a essa circunstância, começamos a morrer. Uma múmia se vai formando em volta de cada um de nós. Para continuar a viver até morrer de uma só vez, em vez de morrer muitas vezes e aos poucos, temos de romper a múmia de dentro para fora. A única maneira de fazê-lo é nos desproteger, provocando embates que nos devolvam à condição de incerteza e abertura que abandonamos quando aceitamos nos mutilar.
É do hábito de imaginar como outros sofrem a mesma trajetória que surge a compaixão. Aliada ao interesse prático, ela nos permite cooperar no enfrentamento das condições que tornam o mundo inóspito ao espírito. E é para torná-lo mais hospitaleiro ao espírito que precisamos democratizar sociedades e reinventar instituições. Temos de desrespeitar e reconstruir as estruturas para poder respeitar e divinizar as pessoas.
Vivemos, porém, em tempo biográfico, não em tempo histórico. Precisamos de soluções que nos atendam no espaço das vidas que temos para viver. Qualquer construção institucional precisa, para avançar, beber na seiva de frustrações e aspirações pessoais.
Uma doçura gratuita, calor misterioso, já une o Brasil. Será que nasce da sabedoria a respeito das coisas mais importantes? A maioria dos brasileiros parece saber, instintivamente, a verdade sobre o drama do espírito -tudo que eu trabalhei tão penosa e tardiamente para descobrir. Não conseguimos, porém, passar da intuição da realidade existencial à imaginação das possibilidades coletivas. Ainda nos faltam clareza sobre um rumo para o país e confiança em nossa capacidade para desbravá-lo. Desiludidos da vida pública, temos de passar pela desilusão da desilusão e nos fazermos profetas de nossa própria grandeza.


Roberto Mangabeira Unger escreve às terças-feiras nesta coluna.


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