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São Paulo, quinta-feira, 11 de setembro de 2003

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Chile, 30 anos atrás

EMIR SADER

O Chile havia escolhido por meio de eleições todos os seus presidentes entre 1830 e 1970, com exceção de 1891 e do período que vai de 1924 a 1931. Constituiu-se um Congresso no Chile antes dos países europeus, salvo a Inglaterra e a Noruega. A participação eleitoral, na metade do século 19, era equivalente à existente na mesma época na Holanda, à que a Inglaterra havia conseguido apenas 20 anos antes e à que a Itália só teria 20 anos depois. O Chile implantou o voto secreto em 1874, antes que isso fosse feito na Bélgica, na Dinamarca, na Noruega e na França.


O país com maior tradição democrática do continente se transformava no paradigma dos regimes de terror


O Chile teve formas de organização sindical ainda no final do século 19, um candidato do Partido Comunista -seu fundador-, Luis Emílio Recabarren, concorreu à Presidência da República em 1920. Teve um governo de frente popular ainda nos anos 30, com participação dos partidos Comunista e Socialista no ministério, assim como da central sindical -governo esse do qual o então jovem médico socialista Salvador Allende foi ministro da Saúde.
Bastariam esses dados para demonstrar a enorme tradição democrática do Chile até aquela terça-feira, 11 de setembro, há exatamente 30 anos, quando o projeto de transformação do capitalismo chileno numa sociedade socialista -aprovado pela maioria dos chilenos nas eleições presidenciais de 1970, com a vitória de Salvador Allende- foi brutalmente interrompido pelo golpe militar dirigido por Pinochet. O país com maior tradição democrática do continente se transformava no paradigma dos regimes de terror que tomaram conta do cone sul da América Latina.
Com a participação do regime militar brasileiro -conforme reportagem recente do jornal conservador chileno "La Tercera"-, que fez com que o então embaixador do Brasil fosse chamado de "o quarto membro da Junta Militar", o projeto golpista, dirigido pelo governo norte-americano de Nixon/Kissinger, rompeu a tradição democrática chilena. A brutal derrota da democracia incluiu a destruição do Palácio de La Moneda, a morte de Salvador Allende, a destruição das instituições democráticas do país -incluindo a queima dos registros eleitorais-, o assassinato de milhares de pessoas, com a prisão, a tortura e o exílio estendendo-se a centenas de milhares de chilenos e estrangeiros vivendo no país.
O regime ditatorial de Pinochet mutilou o país, levou à morte Pablo Neruda, amputou as mãos e deixou que morresse dessangrando diante dos outros presos no Estádio Chile o cantor e compositor Victor Jara, projetou sua ação terrorista a outros países, entre eles a Argentina, o Brasil, o Paraguai e até os EUA. Apoiada na brutal derrota do movimento popular, a ditadura pinochetista introduziu, pioneiramente, o modelo econômico neoliberal e impôs uma constituição ainda vigente no Chile, embora com modificações num plebiscito realizado ainda sob estado de sítio.
A principal lição da experiência de governo de Allende não é, como alguns parecem afirmar, que é preciso renunciar ao projeto histórico da esquerda de lutar contra o capitalismo, porque isso poderia levar a consequências catastróficas, induzindo à renúncia a princípios, e adequar-se às mazelas das economias baseadas na exploração, na discriminação, na dominação, na alienação. Até mesmo porque projetos muito menos radicais, como os que foram rompidos por golpes militares no Brasil, na Bolívia, no Uruguai, na Argentina, na Guatemala, entre outros, foram igualmente rompidos por golpes militares.
A primeira consequência refere-se aos obstáculos para optar, nos marcos da democracia liberal, entre capitalismo e socialismo. Múltiplas formas de alternância no governo existiram no Chile, sempre com os derrotados respeitando o triunfo dos seus adversários. Até que a opção socialista foi impedida por um golpe militar, apoiado não apenas pela direita tradicional e pela extrema direita, mas pelos militares imbuídos da doutrina de segurança nacional e também pelo partido de centro, a Democracia Cristã, além da grande maioria da imprensa.
Uma transformação substancial do capitalismo requer, portanto, a combinação da luta institucional com a criação de uma grande força hegemônica alternativa, apoiada na grande massa explorada e dominada da população, associada a um projeto de transformação que atenda aos interesses dessa grande maioria e, ao mesmo tempo, promova a democracia econômica, social, política e cultural. Não basta a maioria eleitoral, mas a maioria política, social e cultural tem que se expressar também no plano institucional e eleitoral, para ganhar espaços fundamentais para o grande projeto transformador da sociedade.
A segunda grande conclusão se refere à necessidade de alianças internacionais que abram espaço para experiências que contrariem os grandes interesses articulados em torno dos poderes tradicionais das elites dos nossos países. Além disso, a existência de forças partidárias e movimentos sociais imbuídos da consciência de que somente uma sociedade do trabalho -isto é, que garanta o direito ao trabalho para todos, em que todos vivam do seu trabalho e em que seja vedada a exploração do trabalho alheio-, da justiça universalmente garantida, da soberania popular e da diversidade cultural, como aquela pela qual morreu lutando Salvador Allende, há 30 anos, pode representar os avanços civilizatórios que a crise e o esgotamento das economias fundadas no mercado e na exploração do trabalho requerem.
O Chile só pode se orgulhar de ter vivido a experiência do governo de Allende e de buscar sobreviver à de Pinochet. A esquerda reivindica com orgulho a Salvador Allende e seu governo. Que a direita se arranje com Pinochet.

Emir Sader, 59, é professor de sociologia da USP e da Uerj, onde coordena o Laboratório de Políticas Públicas. É autor de "A Vingança da História" (Boitempo Editorial), entre outros livros.


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