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São Paulo, terça-feira, 11 de novembro de 2003

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TENDÊNCIAS/DEBATES

"Catarse" no MCT

ROGÉRIO CEZAR DE CERQUEIRA LEITE

"Katharsis" é a metáfora usada por Aristóteles ("Poética") para combater a condenação de Platão à arte, especialmente à tragédia, por estimular paixões mórbidas que serviriam mal à humanidade. Na tragédia grega, o herói julga sua consciência culpada, com frequência devido ao assassinato de um parente. Através da piedade pelo herói, argumenta Aristóteles, o espectador libera-se de seus conflitos psicológicos, de suas culpas, devido à "autorização" para se emocionar que a ação concreta contida na tragédia concede. E, com isso, revivendo e revisando suas próprias experiências penosas, atinge o espectador um estado de harmonia psicológica e de lucidez realista. Na tradição popular, a catarse liberadora, a purgação de erros pretéritos é alcançada com a revisitação do passado.
Pois bem, o Ministério da Ciência e Tecnologia nos dá o exemplo edificante de catarse ao promover, de maneira intencional, a ressurreição de um paradoxo há séculos suplantado, a saber, a dicotomia entre concentração e dispersão de recursos materiais e intelectuais; e assim desbrava o MCT trilhas imprevisíveis para uma nova política científica e tecnológica. O crime a ser expurgado é, para o MCT, a concentração, e a virtude a ser restaurada é o distributivismo.
Consideremos uma área da ciência e tecnologia de reconhecido sucesso no Brasil: a descoberta, o desenvolvimento e a produção de vacinas que estão tornando o Brasil tecnológica e industrialmente independente. O relevante é que, espontaneamente, sem nenhuma política, as pesquisas sobre vacinas no Brasil se concentram em duas únicas instituições desde seus primórdios: os institutos Butantã e Oswaldo Cruz.
Poderíamos considerar a hipótese alternativa de que tivesse havido uma política de distribuição de recursos e atribuições abrangendo todo o país. É claro que haveria consequências positivas, uma distribuição equitativa, embora diluída, de conhecimento, de bens de infra-estrutura, de emprego etc. Todavia hoje não haveria nenhuma competência nacional para inovar e produzir vacinas, que estariam sendo importadas.
O vale do Silício, um agregado de empresas concentradas na Califórnia, atuando nas áreas de informática, telecomunicações e afins, com cerca de 10 mil companhias, em apenas 30 anos alcançava o PIB industrial brasileiro. Também neste caso não houve planejamento, subsídios ou indução.
Dois outros tipos de ocorrência, baseados no mesmo princípio, também passaram a brotar aqui e ali. Um foi a incubadora de empresas intensivas em tecnologia. Hoje há, só no Brasil, umas 30 dessas incubadoras. Outro fenômeno é o "Parque de Ciência", que concentra universidades e institutos de pesquisa, sendo os mais famosos em Tsukuba, no Japão, e na Sibéria, Rússia.


Hoje a velocidade de obsolescência tecnológica média é tão elevada que ciência e tecnologia se fundem praticamente
O princípio que norteia essa irresistível tendência à agregação é a imperiosa necessidade de trocas intelectuais para produzir ciência e inovação. No passado, a demanda por inovação não exigia velocidades apreciáveis. O tempo de vida de uma tecnologia era de 50, cem anos. Hoje a velocidade de obsolescência tecnológica média é tão elevada que ciência e tecnologia se fundem praticamente. Tudo isso exige velocidade na troca de informação. No século 19 eram tratados, compêndios os veículos de transferência de conhecimento. No começo do século 20, instituíram-se as revistas especializadas, massudas, lentas. Vieram em seguida os "letters", as revistas ágeis, como "Science" e "Nature", e, depois, a internet, os bancos de dados compartilhados etc.
Mas tudo isso fica na superfície. No vale do Silício a realidade se revelou outra; as trocas informais de dados, tais como bisbilhotice, a espionagem industrial consentida, a disputa por executivos, o uso da universidade como plataforma neutra, tudo, enfim, graças à aproximação física, contribuía para uma profícua troca de informações a velocidades alucinantes.
Pois bem, o MCT, revelando indomável coragem, nega tudo isso e vai na direção oposta. A administração anterior, para lançar um programa na nascente área da nanotecnologia, concentrara os parcos recursos disponíveis (R$ 8 milhões) no local que detinha o maior parque instrumental do país e um dos bons grupos de pesquisadores no campo. Orgulhosamente, anuncia o MCT que distribuíra esses recursos, democraticamente, entre 230 grupos. Cada um poderia optar entre um voltímetro marca barbante e uma caixa de giz colorido.
Submetido a críticas, certamente injustas, a valorosa administração central do MCT lança agora o seu projeto para nanotecnologia, sem medo de que seja considerado faraônico, megalomaníaco. A catarse está aí, o distributivismo como princípio fundamental da nova política de ciência e tecnologia. Serão vinte e tantos centros de nanotecnologia, pelo jeito nenhum Estado da Federação poderá se queixar. São R$ 400 milhões para o programa. Uau!
E, para completar esse quadro de filantropia distributivista, recebe o programa "Ciência e Tecnologia para Inclusão Social" R$ 71 milhões, sendo 57% do total reservados à administração do programa. A Fapesp usa só 5% de seu orçamento com a administração, sendo que esse percentual inclui a própria folha de pagamento, o que não ocorre no caso desses magnânimos 57%.
Seria uma injustiça, por outro lado, concluir que esses 57% serão usados em nepotismo e politicagem. Afinal, o MCT já repassava discretamente à Unesco recursos para pagar salários a parentes do ministro da Ciência e Tecnologia. E hoje amplia essa verba em R$ 50 milhões. Caramba, que colossal família. Tudo em nome do distributivismo democrático ressuscitado em honestíssima catarse.

Rogério Cezar de Cerqueira Leite, 71, físico, é professor emérito da Unicamp e membro do Conselho Editorial da Folha.


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