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TENDÊNCIAS/DEBATES
"Catarse" no MCT
ROGÉRIO CEZAR DE CERQUEIRA LEITE
"Katharsis" é a metáfora usada
por Aristóteles ("Poética") para
combater a condenação de Platão à arte,
especialmente à tragédia, por estimular
paixões mórbidas que serviriam mal à
humanidade. Na tragédia grega, o herói
julga sua consciência culpada, com frequência devido ao assassinato de um
parente. Através da piedade pelo herói,
argumenta Aristóteles, o espectador libera-se de seus conflitos psicológicos,
de suas culpas, devido à "autorização"
para se emocionar que a ação concreta
contida na tragédia concede. E, com isso, revivendo e revisando suas próprias
experiências penosas, atinge o espectador um estado de harmonia psicológica
e de lucidez realista. Na tradição popular, a catarse liberadora, a purgação de
erros pretéritos é alcançada com a revisitação do passado.
Pois bem, o Ministério da Ciência e
Tecnologia nos dá o exemplo edificante
de catarse ao promover, de maneira intencional, a ressurreição de um paradoxo há séculos suplantado, a saber, a dicotomia entre concentração e dispersão
de recursos materiais e intelectuais; e assim desbrava o MCT trilhas imprevisíveis para uma nova política científica e
tecnológica. O crime a ser expurgado é,
para o MCT, a concentração, e a virtude
a ser restaurada é o distributivismo.
Consideremos uma área da ciência e
tecnologia de reconhecido sucesso no
Brasil: a descoberta, o desenvolvimento
e a produção de vacinas que estão tornando o Brasil tecnológica e industrialmente independente. O relevante é que,
espontaneamente, sem nenhuma política, as pesquisas sobre vacinas no Brasil
se concentram em duas únicas instituições desde seus primórdios: os institutos Butantã e Oswaldo Cruz.
Poderíamos considerar a hipótese alternativa de que tivesse havido uma política de distribuição de recursos e atribuições abrangendo todo o país. É claro
que haveria consequências positivas,
uma distribuição equitativa, embora diluída, de conhecimento, de bens de infra-estrutura, de emprego etc. Todavia
hoje não haveria nenhuma competência nacional para inovar e produzir vacinas, que estariam sendo importadas.
O vale do Silício, um agregado de empresas concentradas na Califórnia,
atuando nas áreas de informática, telecomunicações e afins, com cerca de 10
mil companhias, em apenas 30 anos alcançava o PIB industrial brasileiro.
Também neste caso não houve planejamento, subsídios ou indução.
Dois outros tipos de ocorrência, baseados no mesmo princípio, também
passaram a brotar aqui e ali. Um foi a incubadora de empresas intensivas em
tecnologia. Hoje há, só no Brasil, umas
30 dessas incubadoras. Outro fenômeno é o "Parque de Ciência", que concentra universidades e institutos de pesquisa, sendo os mais famosos em Tsukuba,
no Japão, e na Sibéria, Rússia.
Hoje a velocidade de obsolescência tecnológica média é tão elevada que ciência e tecnologia se fundem praticamente
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O princípio que norteia essa irresistível tendência à agregação é a imperiosa
necessidade de trocas intelectuais para
produzir ciência e inovação. No passado, a demanda por inovação não exigia
velocidades apreciáveis. O tempo de vida de uma tecnologia era de 50, cem
anos. Hoje a velocidade de obsolescência tecnológica média é tão elevada que
ciência e tecnologia se fundem praticamente. Tudo isso exige velocidade na
troca de informação. No século 19 eram
tratados, compêndios os veículos de
transferência de conhecimento. No começo do século 20, instituíram-se as revistas especializadas, massudas, lentas.
Vieram em seguida os "letters", as revistas ágeis, como "Science" e "Nature", e,
depois, a internet, os bancos de dados
compartilhados etc.
Mas tudo isso fica na superfície. No
vale do Silício a realidade se revelou outra; as trocas informais de dados, tais
como bisbilhotice, a espionagem industrial consentida, a disputa por executivos, o uso da universidade como plataforma neutra, tudo, enfim, graças à
aproximação física, contribuía para
uma profícua troca de informações a
velocidades alucinantes.
Pois bem, o MCT, revelando indomável coragem, nega tudo isso e vai na direção oposta. A administração anterior,
para lançar um programa na nascente
área da nanotecnologia, concentrara os
parcos recursos disponíveis (R$ 8 milhões) no local que detinha o maior parque instrumental do país e um dos bons
grupos de pesquisadores no campo. Orgulhosamente, anuncia o MCT que distribuíra esses recursos, democraticamente, entre 230 grupos. Cada um poderia optar entre um voltímetro marca
barbante e uma caixa de giz colorido.
Submetido a críticas, certamente injustas, a valorosa administração central
do MCT lança agora o seu projeto para
nanotecnologia, sem medo de que seja
considerado faraônico, megalomaníaco. A catarse está aí, o distributivismo
como princípio fundamental da nova
política de ciência e tecnologia. Serão
vinte e tantos centros de nanotecnologia, pelo jeito nenhum Estado da Federação poderá se queixar. São R$ 400 milhões para o programa. Uau!
E, para completar esse quadro de filantropia distributivista, recebe o programa "Ciência e Tecnologia para Inclusão Social" R$ 71 milhões, sendo 57%
do total reservados à administração do
programa. A Fapesp usa só 5% de seu
orçamento com a administração, sendo
que esse percentual inclui a própria folha de pagamento, o que não ocorre no
caso desses magnânimos 57%.
Seria uma injustiça, por outro lado,
concluir que esses 57% serão usados em
nepotismo e politicagem. Afinal, o MCT
já repassava discretamente à Unesco recursos para pagar salários a parentes do
ministro da Ciência e Tecnologia. E hoje
amplia essa verba em R$ 50 milhões.
Caramba, que colossal família. Tudo em
nome do distributivismo democrático
ressuscitado em honestíssima catarse.
Rogério Cezar de Cerqueira Leite, 71, físico, é professor emérito da Unicamp e membro do
Conselho Editorial da Folha.
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