UOL




São Paulo, terça-feira, 11 de novembro de 2003

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

TENDÊNCIAS/DEBATES

A sacerdotisa

JORGE BOAVENTURA

Segundo pensamos e o temos conceituado frequentemente, o ideal democrático, universal e eterno por ser o único compatível com a racionalidade do ser humano, consiste "na aspiração de construir superestruturas político-administrativas, o mais e o melhor possível, capazes de amparar, de proteger e, quando indispensável, subsidiariamente, promover os interesses justos e os anseios legítimos daqueles que irão viver sob a sua jurisdição".
Ao nos referirmos a interesses e anseios legítimos e justos, implicitamente estamos supondo a existência de um referencial permanente de valores, em relação ao qual possam ser estabelecidas a sua justeza e a sua legitimidade.
Agora vamos tocar em assunto que nos parece de extrema importância e singular gravidade. É que, na "Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão", promulgada pela assembléia nacional resultante da revolução de 1789, na França, o art. 6º estabelecia que "a lei é a expressão da vontade geral, manifestada diretamente ou por intermédio de representantes". E, mais adiante, que "ninguém será obrigado a fazer ou a deixar de fazer alguma coisa, a não ser em virtude de lei".
Nenhuma alusão a qualquer referencial axiológico fixo, tudo passando a depender das preferências de maiorias volúveis de legisladores, eis que a vontade geral, na prática, é sempre manifestada por meio de representantes. Ou seja, superestimava-se a razão humana, o que não é de estranhar, de vez que se estava no apogeu do racionalismo, especialmente francês, pano de fundo da revolução de 89, predominantemente agnóstica, quando não abertamente atéia.
Como a revolução em causa, por parte de seus reais mentores, alegava pretextos mais do que válidos, resultantes dos abusos do absolutismo monárquico e da discriminação, na lei, entre nobres e clérigos, aos quais cabiam privilégios negados a todos os demais, ela empolgou as massas e tornou-se vitoriosa.
E falamos dos seus reais mentores porque, no art. 172, e último, da famosa declaração, estabelecia-se que "a propriedade privada é sagrada, não podendo ser desapropriada, a não ser em face de inquestionável e grave ameaça ao interesse público e, ainda assim, por meio de prévia e justa indenização, paga em dinheiro".


Tudo passou ao controle dos que, de fato, manipulam uma espécie de estranho "deus" pagão, o mercado
Como se vê, não eram os famintos e descamisados os mentores do movimento. Estes eram os que, por detrás da aparência justa e nobre do art. 6º, o que de fato faziam era a desvinculação do processo civilizatório das suas bases culturais, no caso da civilização ocidental factualmente representadas pelas sagradas escrituras, das quais defluem os fundamentos do direito natural, que, não substituindo o direito positivo, deve emoldurá-lo, por fornecer-lhe o referencial fixo de valores a que aludimos ao expressar o nosso conceito acerca do verdadeiro ideal democrático.
Substituídos como foram, na prática, por decisões de maiorias eventuais e volúveis de legisladores -como se, filosoficamente, fosse sustentável a idéia de que maiorias são fontes de verdade-, o que ao menos os cristãos deveriam saber que não são, à luz do episódio ocorrido diante do pretório de Pilatos, em que a maioria decidiu pela morte de Jesus, que o próprio pretor declarava inocente, tudo passou ao controle dos que detivessem os meios de formar maiorias nas casas legislativas e de influir sobre o sentido das leis a serem aprovadas. Em outros termos, tudo passou ao controle dos que, de fato, manipulam uma espécie de estranho "deus" pagão, o mercado, absurdamente erigido em ente autônomo, ao qual os homens, sem cujo esforço ele não existiria, têm que servir.
A tais controladores o que interessa não é, obviamente, a verdadeira democracia, mas a sua forma degradada e espúria, que resultou do art. 6º mencionado aqui, e de outros incisos, da "declaração". É ela a sacerdotisa do "deus" mercado, cujos mentores tentam impor a qualquer custo, sob a influência hipnoticamente atordoadora, colossal propaganda a seu favor.
Há uma lição imortal, porém, capaz de ajudar a desfazer a hipnose da propaganda: "Pelos frutos os conhecereis". O que acha o leitor desses frutos, no Brasil e no mundo, com o alastramento da violência em suas formas mais brutais, com a corrupção se generalizando e se tornando incontrolável, com o aumento do número de miseráveis e a concentração absurda dos bens em mãos de pouquíssimos -exatamente os que, por detrás do pano, regem o espetáculo, lançando mão da sacerdotisa, como pretexto cuja verdadeira índole estamos tentando desmascarar?
Mente-se, e desde há muito, às multidões aturdidas. Exemplos? Quantas vezes já ouviu o leitor repetir que a Idade Média foi uma idade de trevas? Entretanto a idéia de universidade e todas as grandes universidades européias nasceram no medievo.
Voltaremos ao assunto, se Deus quiser, em um esforço quase solitário de esclarecimento acerca de assuntos que são ignorados ou considerados tabus. Que Deus nos ajude, bem como a independência desta Folha.

Jorge Boaventura, 80, ensaísta e escritor, é conselheiro do Comando da Escola Superior de Guerra.
www.jorgeboaventura.jor.br


Texto Anterior: TENDÊNCIAS/DEBATES
Rogério Cezar de Cerqueira Leite: "Catarse" no MCT

Próximo Texto: Painel do leitor
Índice

UOL
Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.