São Paulo, sábado, 12 de janeiro de 2002

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Morrendo um cônjuge homossexual, é certo dar a guarda do filho dele ao outro cônjuge?

SIM

Uma questão de justiça

SILVIA PIMENTEL

Pela primeira vez no país, o Judiciário manifestou-se sobre guarda de criança pleiteada por companheira homossexual. Representou um avanço significativo a liminar concedida em relação à guarda provisória do filho de Cássia Eller a Maria Eugênia, que com ela conviveu durante 14 anos. Tudo indica que a tutela definitiva do garoto venha confirmar essa corajosa decisão.
Embora pequeno, é crescente o número de decisões judiciais que asseguram os direitos de pessoas homossexuais. Vale destacar decisão do STF (Supremo Tribunal Federal), de 2000, sobre o direito à igualdade e à não-discriminação em virtude de orientação sexual. Alguns Tribunais de Justiça do país também já proferiram decisões inovadoras sobre os direitos de pessoas do mesmo sexo em união estável.
O ordenamento jurídico brasileiro é omisso em relação aos homossexuais e não garante a todos os seus cidadãos tratamento que respeite os valores de igualdade, respeito, equidade e diversidade. Esse fato tem servido para reforçar e reproduzir preconceitos, estereótipos e discriminações, além de muita hipocrisia. É causa de grande sofrimento.
Mesmo muitos esforços de alguns grupos da sociedade civil não conseguiram incluir a livre orientação sexual como um direito estabelecido na Constituição. Contudo é inegável que representaram um marco relevante na busca do reconhecimento jurídico dos direitos humanos de homossexuais.
Cumpre frisar que há poucas normas em nosso país que consideram expressamente a discriminação por orientação sexual: a Constituição de Sergipe (1989); a Lei Orgânica do Distrito Federal (1993); duas leis ordinárias no Estado do Rio (1999 e 2000); e uma lei ordinária de Santa Catarina (2000).
A Assembléia Legislativa de São Paulo aprovou, em 2001, legislação que estabelece a punição para qualquer tipo de discriminação contra homossexuais, bissexuais ou transgêneros.
No Congresso, encontra-se em tramitação o projeto de lei nš 1.151-A, de autoria da então deputada Marta Suplicy e que aguarda votação na Câmara. O projeto assegura a duas pessoas do mesmo sexo o reconhecimento de sua união civil, visando a proteção de seus direitos, dentre eles, os referentes a propriedade, sucessão e benefícios previdenciários. O momento é oportuno para a ampliação de seu conteúdo no sentido de contemplar temas não apenas patrimoniais, mas também os relativos à guarda ou tutela de crianças e adolescente.
Consta da justificativa do projeto que a ninguém é dado ignorar que a heterossexualidade não é a única forma de expressão da sexualidade humana; que, conforme o Conselho Federal de Medicina e a Organização Mundial da Saúde, a homossexualidade não pode ser considerada desvio ou transtorno sexual; e que deve ser suprida a lacuna jurídica em relação aos não-heterossexuais.
A justificativa do projeto ressalta que o Brasil é um país no qual homossexuais têm sofrido extrema violência e que a legalização da união civil entre pessoas do mesmo sexo favorecerá e diminuirá o comportamento discriminatório em relação a essas pessoas. Cabe ao Estado aceitar e proteger essa realidade.
O movimento político e jurídico brasileiro em torno dos direitos referentes à livre orientação sexual insere-se em um contexto internacional de construção dos direitos humanos.
A socióloga feminista norte-americana Nancy Fraser aponta que tanto a injustiça socioeconômica quanto a injustiça cultural se encontram amplamente difundidas nas sociedades contemporâneas. Estão ambas arraigadas em processos e práticas que sistematicamente colocam grupos de pessoas em desvantagem ante outros. Ambas, portanto, devem ser remediadas. Para ela, ser democrata radical implica estar atento e tratar de eliminar dois tipos de impedimento à participação democrática: a desigualdade social e o desrespeito à diferença. A democracia radical requer uma política cultural da identidade e da diferença, bem como uma política social.
A Declaração dos Direitos Humanos de 1993 (adotada por mais de 170 Estados) reitera a concepção introduzida pela Declaração de 1948 ao afirmar: "Todos os direitos humanos são universais, interdependentes e relacionados. A comunidade internacional deve tratar os direitos humanos globalmente de forma justa e equitativa, em pé de igualdade e com a mesma ênfase".
Como diz a jurista Flávia Piovesan, vive-se um momento no Brasil de redefinição e reformulação da agenda de direitos humanos, em que são incorporados temas como os direitos econômicos, sociais e culturais ao lado dos tradicionais direitos civis e políticos. Assim, há que se incorporar os direitos dos homossexuais como direitos humanos.
O projeto de lei sobre união civil de homossexuais é passo extremamente importante nesse sentido. Nossa expectativa, agora, é que o Congresso honre o exemplo dado pelo Judiciário do Rio.


Silvia Pimentel, 61, professora da Faculdade de Direito da PUC-SP, é coordenadora nacional do Comitê Latino-Americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher (Cladem-Brasil) e membro do conselho diretor da Comissão de Cidadania e Reprodução.


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