|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
TENDÊNCIAS/DEBATES
Morrendo um cônjuge homossexual, é certo dar a guarda do filho dele ao outro cônjuge?
SIM
Uma questão de justiça
SILVIA PIMENTEL
Pela primeira vez no país, o Judiciário manifestou-se sobre guarda de criança pleiteada por companheira
homossexual. Representou um avanço
significativo a liminar concedida em relação à guarda provisória do filho de
Cássia Eller a Maria Eugênia, que com
ela conviveu durante 14 anos. Tudo indica que a tutela definitiva do garoto venha confirmar essa corajosa decisão.
Embora pequeno, é crescente o número de decisões judiciais que asseguram os direitos de pessoas homossexuais. Vale destacar decisão do STF (Supremo Tribunal Federal), de 2000, sobre
o direito à igualdade e à não-discriminação em virtude de orientação sexual.
Alguns Tribunais de Justiça do país
também já proferiram decisões inovadoras sobre os direitos de pessoas do
mesmo sexo em união estável.
O ordenamento jurídico brasileiro é
omisso em relação aos homossexuais e
não garante a todos os seus cidadãos
tratamento que respeite os valores de
igualdade, respeito, equidade e diversidade. Esse fato tem servido para reforçar e reproduzir preconceitos, estereótipos e discriminações, além de muita hipocrisia. É causa de grande sofrimento.
Mesmo muitos esforços de alguns
grupos da sociedade civil não conseguiram incluir a livre orientação sexual como um direito estabelecido na Constituição. Contudo é inegável que representaram um marco relevante na busca
do reconhecimento jurídico dos direitos humanos de homossexuais.
Cumpre frisar que há poucas normas
em nosso país que consideram expressamente a discriminação por orientação sexual: a Constituição de Sergipe
(1989); a Lei Orgânica do Distrito Federal (1993); duas leis ordinárias no Estado do Rio (1999 e 2000); e uma lei ordinária de Santa Catarina (2000).
A Assembléia Legislativa de São Paulo
aprovou, em 2001, legislação que estabelece a punição para qualquer tipo de
discriminação contra homossexuais,
bissexuais ou transgêneros.
No Congresso, encontra-se em tramitação o projeto de lei nš 1.151-A, de autoria da então deputada Marta Suplicy e
que aguarda votação na Câmara. O projeto assegura a duas pessoas do mesmo
sexo o reconhecimento de sua união civil, visando a proteção de seus direitos,
dentre eles, os referentes a propriedade,
sucessão e benefícios previdenciários. O
momento é oportuno para a ampliação
de seu conteúdo no sentido de contemplar temas não apenas patrimoniais,
mas também os relativos à guarda ou
tutela de crianças e adolescente.
Consta da justificativa do projeto que
a ninguém é dado ignorar que a heterossexualidade não é a única forma de
expressão da sexualidade humana; que,
conforme o Conselho Federal de Medicina e a Organização Mundial da Saúde,
a homossexualidade não pode ser considerada desvio ou transtorno sexual; e
que deve ser suprida a lacuna jurídica
em relação aos não-heterossexuais.
A justificativa do projeto ressalta que
o Brasil é um país no qual homossexuais
têm sofrido extrema violência e que a legalização da união civil entre pessoas do
mesmo sexo favorecerá e diminuirá o
comportamento discriminatório em relação a essas pessoas. Cabe ao Estado
aceitar e proteger essa realidade.
O movimento político e jurídico brasileiro em torno dos direitos referentes à
livre orientação sexual insere-se em um
contexto internacional de construção
dos direitos humanos.
A socióloga feminista norte-americana Nancy Fraser aponta que tanto a injustiça socioeconômica quanto a injustiça cultural se encontram amplamente
difundidas nas sociedades contemporâneas. Estão ambas arraigadas em processos e práticas que sistematicamente
colocam grupos de pessoas em desvantagem ante outros. Ambas, portanto,
devem ser remediadas. Para ela, ser democrata radical implica estar atento e
tratar de eliminar dois tipos de impedimento à participação democrática: a desigualdade social e o desrespeito à diferença. A democracia radical requer uma
política cultural da identidade e da diferença, bem como uma política social.
A Declaração dos Direitos Humanos
de 1993 (adotada por mais de 170 Estados) reitera a concepção introduzida
pela Declaração de 1948 ao afirmar:
"Todos os direitos humanos são universais, interdependentes e relacionados. A
comunidade internacional deve tratar
os direitos humanos globalmente de
forma justa e equitativa, em pé de igualdade e com a mesma ênfase".
Como diz a jurista Flávia Piovesan, vive-se um momento no Brasil de redefinição e reformulação da agenda de direitos humanos, em que são incorporados temas como os direitos econômicos, sociais e culturais ao lado dos tradicionais direitos civis e políticos. Assim,
há que se incorporar os direitos dos homossexuais como direitos humanos.
O projeto de lei sobre união civil de
homossexuais é passo extremamente
importante nesse sentido. Nossa expectativa, agora, é que o Congresso honre o
exemplo dado pelo Judiciário do Rio.
Silvia Pimentel, 61, professora da Faculdade de
Direito da PUC-SP, é coordenadora nacional do
Comitê Latino-Americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher (Cladem-Brasil) e
membro do conselho diretor da Comissão de Cidadania e Reprodução.
Texto Anterior: Frases
Próximo Texto: NÃO Francesco Scavolini: A vida é bela
Índice
|