São Paulo, domingo, 12 de janeiro de 2003

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Presidente Lula da Silva

FÁBIO WANDERLEY REIS


O acelerado aprendizado a que o PT se viu forçado culmina agora na necessidade de encontrar o equilíbrio

Há menos de dois anos, a hipótese da vitória de Lula nas eleições de 2002 era razão para um debate nacional a respeito da possibilidade de golpe de Estado. Durante a campanha, não mais que alguns meses atrás, a turbulência econômico-financeira, associada às pesquisas eleitorais que reforçavam aquela hipótese, permitia a Rubens Ricupero e outros falar de "golpe de mercado" para apontar, igualmente, ameaças à estabilidade político-institucional do país. No entanto, empossado Lula, o que vemos são mercados tranquilizados, dólar e risco-Brasil em queda, investidores que voltam, empresários otimistas, ânimo popular festivo...
Um aspecto do que observamos certamente se liga com a nítida mudança na imagem de Lula ocorrida nos últimos tempos e consumada ao longo do processo eleitoral recente: do chefe beligerante de um partido de ideologia revolucionária e socialista ao retirante e operário alçado à Presidência e transformado em símbolo do acesso do povão ao poder. Até aqui, a única via aberta à ascensão e à afirmação populares em nossa sociedade elitista e desigual tem sido a via lúdica e "folclórica" do Brasil do futebol, do Carnaval e da música popular. Na política, a presença do povão sugeria "populismo", entendido como contrafação em que lideranças alheias ao eleitorado popular o manipulam e enganam. Agora, o país com cuja cara nos acostumamos nos protagonistas vitoriosos de Copas do Mundo ou na Marquês de Sapucaí, e que até aprendemos a reclamar como nosso em sua simpatia folclórica (apesar de, com frequência, aborrecer-nos nas notícias de coisas como greves e violências), deixa de atuar como mero figurante nas tramas cotidianas do Brasil "sério" e ergue-se, com o presidente Lula, como parte decisiva dele.
Dificilmente se poderia subestimar a importância do simbolismo aí contido. Mas cabe assinalar um paradoxo aparente. Por um lado, o Lula chefe partidário e seu partido inicialmente insurrecional suscitavam temores ou mesmo o veto de certos setores, e foi preciso o aprendizado de realismo e moderação por parte de ambos para que se rompessem as resistências e se tornasse possível a convergência que parece se dar no momento. Por outro lado, contudo, é por seu longo investimento na construção de uma instituição partidária autêntica que Lula ganha densidade e não pode ter sua liderança confundida com os populismos de sempre, mesmo se o simbolismo que se liga a ele suscita o entusiasmo popular. Quanto à inspiração ideológica e principista que dá a marca de origem ao PT, ainda que fatalmente mitigada no aprendizado imposto pelo jogo político-eleitoral da democracia e pelas circunstâncias econômicas e políticas da cena mundial, ela é talvez o que permite a expectativa de que o necessário pragmatismo não desande em mera fraude populista ou capitulação.
É clara a ironia. Por longo tempo reclamamos partidos ideológicos ou "autênticos" e xingamos nossos partidos pragmáticos ou "fisiológicos". Quando, porém, o processo político do país enseja o surgimento de um partido que se aproxima do modelo desejado, passamos a reclamar dele pragmatismo e realismo e as circunstâncias tornam a exigência mais justificada do que nunca. Com um pouco de sorte, talvez venhamos a ter o desfecho saudável de que, tal como nas melhores experiências social-democráticas, as fantasias do modelo de política ideológica, erigido em paradigma de política "virtuosa", sejam superadas na condição em que se combinem ideologia e pragmatismo em doses adequadas.
O aspecto especial a destacar é que o acelerado aprendizado a que o PT se viu forçado culmina agora na necessidade de encontrar o equilíbrio e colocá-lo em prática já no exercício do poder presidencial e em circunstâncias em que o que se espera do governo é extraordinariamente complexo e difícil. Do ponto de vista político-institucional, é certamente possível sustentar que, diante dos velhos temores e resistências ao PT, um governo Lula que chegue ao fim em condições de normalidade institucional, mesmo com desempenho apenas razoável (ou nem isso), significará importante avanço em nosso processo democrático e a provável consolidação da democracia no país. O desafio, porém, é governar bem tanto "à direita", assegurando a inserção tão benigna quanto possível do país na dinâmica econômico-financeira internacional, quanto "à esquerda", atendendo de maneira consistente, e não meramente emergencial ou simbólica, às expectativas que o governo Lula suscita no plano social.
Assim, as condições gerais, especialmente no plano internacional, são sem dúvida muito mais negativas do que no começo da "era FHC". Mas um governo Lula que obtivesse, ao cabo, os êxitos relativos de Fernando Henrique, com realizações como alguma estabilidade econômico-financeira (apesar das apostas erradas, da vulnerabilidade externa e da estagnação), alguma reforma do Estado e alguns avanços sociais em itens como saúde e educação, seria certamente avaliado como tendo resultado em rotundo fracasso. Fica a indagação de até que ponto, diante da perplexidade que nos envolve a todos nessa conjuntura difícil, Lula e o PT terão a acuidade e a criatividade necessárias para responder à dificuldade do desafio. E o conforto de que, se a resposta satisfizer em algum grau, o avanço representado pelo governo que agora começa, além de ultrapassar o plano das instituições políticas, adquirirá, com certeza, relevância mundial.

Fábio Wanderley Reis, 64, cientista político, doutor pela Universidade Harvard (EUA), é professor emérito da UFMG.


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