São Paulo, Segunda-feira, 12 de Abril de 1999
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Falta de energia e de patriotismo


A área econômica do governo ignora o setor de ciência e tecnologia. Cuida mais do jogo financeiro de bancos


LUIZ PINGUELLI ROSA

A "Time" de 29/3 elenca entre os maiores nomes do século os irmãos Wright, homenageados pela invenção do avião num artigo de Bill Gates que nem sequer cita Santos Dumont; ignora-o. O patriotismo dos EUA, que chega a ser provinciano nesse caso, contrasta com o esnobismo cosmopolita e antinacional da nossa elite dirigente. A área econômica do governo ignora o setor de ciência e tecnologia. Cuida mais de intermediar negócios e do jogo financeiro de bancos do que de atividades produtivas importantes, as quais quer entregar a empresas estrangeiras.
O governo insiste no rumo que levou ao colapso do sistema elétrico, ignorando as advertências de técnicos. De dois anos para cá, publiquei um artigo que advertia que os erros da área econômica causariam blecautes e outro chamado "Da falta de luz à de combustíveis?" (Opinião, pág. 1-3, 23/2/98).
A luz já falta. Os combustíveis dependem do destino da Petrobrás, que desenvolve tecnologia no país. O problema não é seu novo presidente (aliás, discordo das críticas por ele ter nascido na França). O problema é o novo conselho da Petrobrás, nomeado pelo governo com amplos poderes. Nele, poucos entendem de petróleo; alguns são antagônicos à empresa e até defensores de competidores. Por outro lado, foi dado um prazo inviável para ela implantar poços em áreas de concessão.
O presidente disse, na Escola Superior de Guerra, que reduzirá as dimensões da Petrobrás no refino e na distribuição. Mas a indústria de petróleo é verticalizada e de grande escala, com fusões de empresas (como Exxon-Mobil e BP-Amoco-Atlantic). A fragmentação tende a inviabilizar a Petrobrás, embora o governo negue desejar isso. Pode ser exigência secreta do FMI?
Controlam as empresas privatizadas do setor elétrico grupos norte-americanos, franceses, espanhóis, portugueses, chilenos e panamenhos, alguns estatais. Nenhum tem experiência com um sistema hidrelétrico, e alguns têm pouca competência. A energia ficou cara, com mais riscos de déficit e blecaute.
O governo divulgou que um raio na subestação da Cesp em Bauru (SP) causou o blecaute de 11 de março. Isso pode dar margem para que as empresas privatizadas contestem na Justiça o direito de indenização dos consumidores, reconhecido pela Aneel, agência reguladora do setor. A essência do problema é saber se houve um evento maior (improvável), diante do qual a tecnologia disponível não permita proteger o sistema (como uma descarga que rompesse a proteção da subestação, fazendo cair todas as suas linhas), ou se houve um evento trivial, como uma descarga atmosférica na linha de transmissão. É extremamente improvável um raio tirar de operação uma subestação inteira. Essa informação, divulgada só no segundo dia após o acidente, poderia ser verificada pelos sensores que medem o campo magnético nas áreas ao longo das linhas, assinalando os lugares onde os raios caem.
Não houve, segundo a detecção dos sensores, descargas atmosféricas em Bauru em 11 de março. Elas foram detectadas a alguns quilômetros dessa cidade. Se o raio não caiu na subestação, mas sim na linha, pode ter causado um pulso elétrico; este só poderia ter entrado na subestação, desligando-a, por falta de proteção adequada e se já houvesse problemas nas linhas. Essa foi, desde o início, minha interpretação, em declarações -nem sempre divulgadas- à imprensa e à televisão.
O sistema caiu porque a falta de investimento tornou sua operação de alto risco. O Brasil desenvolveu um sistema interligado (raro no mundo, mas muito eficaz até agora), com hidrelétricas distantes, de bacias hidrográficas diferentes, ligadas numa rede com grandes cargas, que demandam energia e potência concentradamente, como São Paulo, Rio e Belo Horizonte. Esse sistema opera em base cooperativa, planejada para usar a água de forma otimizada. A desotimização hoje é evidente: a água está escasseando em alguns reservatórios. A operação tinha de ter sido ajustada a tempo, para economizar água e transferir a geração para outras usinas. Mas faltam usinas e falta transmissão: o setor privado não investiu.
Coloquei essas questões em reunião, na Subcomissão de Infra-Estrutura do Senado, com o ministro de Minas e Energia e os presidentes da Eletrobrás, da Aneel e do ONS (Operador Nacional do Sistema Elétrico). É importante o fato de o ministério ter recuado, admitindo a precipitação na transferência da operação do sistema para o setor privado. Por coerência, deve o governo federal rever a divisão de Furnas em empresas a ser privatizadas, o que poderá aumentar o risco em um sistema já vulnerável, como ficou evidenciado no blecaute. Furnas é o coração do sistema interligado Sudeste/Centro-Oeste/Sul, sendo responsável pela interligação de Itaipu. É tempo de parar para pensar.


Luiz Pinguelli Rosa, 57, físico, é professor titular de planejamento energético da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro).



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