São Paulo, Segunda-feira, 12 de Abril de 1999
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A crise e o discurso


Para além das crises perversas do capitalismo global, temos de encarar as responsabilidades por mais um fracasso


GILBERTO DUPAS

Passada a parte mais dramática da crise que nos levou ao desmantelamento da âncora cambial, já se pode ter um mínimo de distanciamento para tentar analisar com um pouco mais de isenção as causas e as responsabilidades.
Claro está que o modelo naufragou quando a dificuldade de equilibrar o déficit público e avançar na trilha dos ganhos internos de competitividade gerou crescente dependência de recursos externos (inclusive capitais voláteis). Isso acarretou um nível perigosamente alto das dívidas externa e interna, realimentadas por juros reais inéditos.
Nessa situação, que permitia um pequeno espaço de manobra, fomos atropelados pela grave crise internacional de 1997, com repique no final de 1998. No primeiro momento, ela levou como poeira parte das reservas formadas com capital volátil. No segundo, arrastou o que havia retornado durante 1998, via juros altos, mais todo o restante; comprometeu pesadamente, por vazio de credibilidade, toda a lógica do nosso financiamento externo.
O governo tentou resistir. Um primeiro acordo com o FMI esboçou-se, mas as reservas aproximavam-se dos dramáticos US$ 20 bilhões. Numa operação até hoje incompreensível, tentou-se impor uma banda móvel -aquela que durou um dia. Relembremos o óbvio: banda móvel só pode ser eficaz quando, graças a duras medidas implantadas simultaneamente, o mercado passa a acreditar que a flutuação do dólar se dará dentro daquele patamar. Quando isso não ocorre, o teto transforma-se em piso da nova banda, e assim sucessivamente. No caso, a dissolução da banda foi instantânea.
Restou a emergência do câmbio flutuante, monitorado por um duro acordo com o FMI, que acabou impondo condições de fora para dentro. Paciência. Tivemos de aceitar a teoria do menor dos danos. Agora, se tudo correr bem, após uma dura recessão neste semestre, voltaremos a crescer lentamente no final do ano. Teremos perdido uns 3% do PIB, estaremos mais pobres uns 25% nos ativos dolarizados, e a inflação -supostamente não indexada nesse cenário- terá comido uns 10% a 15% do valor real das rendas. Mas, repito, se tudo ocorrer assim -e supondo que o governo faça a parte que lhe cabe da reforma tributária e do ajuste da Previdência-, menos mal.
Ficam no ar, porém, algumas questões importantes, que o sufoco obrigou o país a deixar de lado. Uma delas é o discurso de despedida de Gustavo Franco, de mais de uma hora, que ficou pairando no ar. Brilhante peça de oratória, como brilhante é seu autor, merece um pouco de reflexão. Comecemos com alguns de seus princípios.
A frase de abertura é de Paul Volcker: a filosofia dos bancos centrais bem-sucedidos deve basear-se em continuidade, competência e integridade. Em seguida, ao defender a autonomia desses bancos, Franco afirma que a despolitização da moeda interessa a todos, mas poucos têm coragem para propô-la.
Essa discussão é muito interessante. Os cultivadores da primazia da moeda sobre a sociedade acham que é possível definir o BC como um poder autônomo, acima do bem e do mal. Imaginemos que Franco não fosse demissível pelo presidente. Ele teria mantido a âncora cambial até hoje? Onde estaríamos, então, nós e nossas reservas?
Diz ele que a defesa da moeda não falhou nem caiu vítima de um ataque especulativo, mas foi abandonada por aqueles que pressionavam por uma saída fácil. Afirma que o Real foi desmontado sem sangue, após o presidente (que tomou a decisão) ser persuadido. E completa: ao BC nunca faltou capacidade de operar, mas, às vezes, faltou comando. Só podemos imaginar que, como provavelmente Franco se considera um comandante audaz, ele esteja se referindo, mais uma vez, a FHC.
Sem entrar no mérito do estilo de comando de Fernando Henrique, parece ter sido sugerida várias vezes a ele, por figuras de expressão dentro e fora do governo, a execução de uma maxidesvalorização, entre 20% e 25%, quando as reservas estavam em US$ 60 bilhões. Embora seja muito fácil fazer essa análise a posteriori, há um razoável consenso de que, se essas sugestões tivessem sido aceitas, estaríamos hoje em melhor situação, ainda que tendo passado pelas mesmas crises.
Sabemos também que as radicais convicções de Franco foram essenciais para que a discussão sobre a flexibilização do câmbio não prosperasse. Seria dessa ausência de comando, que teria feito o presidente bancar sua posição (e não enquadrá-lo) até não restar alternativa, que ele hoje se queixa?
Passado é passado. A história, implacável, nunca volta atrás. Para além das crises perversas do capitalismo global, temos de encarar as responsabilidades por mais um fracasso econômico. É justo que ao governo de plantão caiba sempre a maior parte, ainda que ele não possa reinventar a sociedade que governa. Mas todos têm sua parcela, especialmente as elites. Cumpre seguir em frente. Quanto ao toque de arrogância do discurso de Franco, melhor é creditá-lo à juventude e ao brilho.


Gilberto Dupas, 56, economista, é coordenador da área de assuntos internacionais do Instituto de Assuntos Avançados da USP (Universidade de São Paulo). É autor de "Economia Global e Exclusão Social" (Paz e Terra), entre outras obras.



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