São Paulo, sábado, 12 de maio de 2007

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TENDÊNCIAS/DEBATES

É correta a posição da Igreja Católica em relação ao aborto?

NÃO

Em defesa das liberdades laicas

ROBERTO ARRIADA LOREA

EM SOCIEDADES democráticas, não é papel do Estado fomentar doutrinas religiosas. Quanto ao aborto, seguir ou não a orientação da igreja é decisão que cada brasileira tomará ao enfrentar o dilema de interromper uma gravidez indesejada. A laicidade do Estado impõe que a decisão seja acolhida pelo Ministério da Saúde, garantindo o pré-natal ou o acesso a um aborto legal e seguro.
O fato de vivermos em um Estado laico é que garante às brasileiras o acesso a informações sobre métodos contraceptivos e relações sexuais protegidas por preservativos. Essas informações permitem que a mulher, livre e conscientemente, tome suas próprias decisões. Se uma mulher católica não quiser usar a pílula ou se proteger, não está obrigada a fazê-lo.
O Estado laico respeita sua decisão, mas ela não perde sua liberdade para mudar de idéia quando quiser.
O debate sobre o aborto não produz consenso. Como resultado, nas sociedades democráticas, as mulheres não são obrigadas a abortar, pois gozam de autonomia reprodutiva. Pelo mesmo fundamento, não são obrigadas a levar a termo a gravidez indesejada.
A recente descriminalização do aborto pela sociedade mexicana (88% de católicos) traz bom ensinamento. O fato de a maioria ser católica não impede que se respeitem as minorias.
Ser católico não impede que se seja laico, isto é, que se aceite que existem pessoas que pensam diferente e que também essas pessoas devem ter seus direitos garantidos pelo Estado.
A reação adversa à proposta de descriminalização do aborto expõe nossa cultura jurídica monárquica, tão afeiçoada à desigualdade. Governantes, legisladores e juízes não sentem necessidade de descriminalizar o aborto pois, ante uma gravidez indesejada, independentemente do que pensem a respeito, têm liberdade para acessar um aborto legal (de fato) e seguro.
Compreender como opera essa lógica excludente contribui para enfrentar a questão. Tomemos o exemplo do ensino religioso na escola pública. Nós, das elites, não somos atingidos, pois pagamos escolas privadas. Compramos a liberdade de escolher se nossos filhos terão educação confessional ou laica. Se outras pessoas não podem pagar por escolas laicas e são obrigadas a enviar os filhos a escolas públicas confessionais, onde se convertem em minorias estigmatizadas, é problema delas. Se suas consciências e crenças estão protegidas como garantias fundamentais na Constituição, é problema delas. Se a dignidade dessas famílias é violada a cada dia letivo, é problema delas.
Numa interpretação jurídica simplória, admite-se o ensino público religioso, aplicando-se uma regra (art. 210, parágrafo 1º, CF) que viola o princípio da dignidade da pessoa humana, assegurado no primeiro artigo da Constituição. Num paralelo entre nosso ordenamento jurídico e o sistema solar, equivale a dar maior importância a Plutão do que ao próprio sol.
Como se forja uma cultura jurídica tão insensível às liberdades do outro?
Impondo às minorias um tratamento desigual desde os primeiros dias na escola. Privilegiando um determinado pertencimento religioso em detrimento de outras crenças -ou da não-crença. Submetendo crianças e adolescentes a um tratamento desigual durante gerações, formamos uma sociedade indiferente à desigualdade. Quatro séculos de ditadura religiosa debilitaram nossa capacidade de lutar pelos direitos de quem pensa de forma diferente de nós.
O respeito à pluralidade é condição para um enfrentamento da questão do aborto que fortaleça a cidadania. O Estado é o responsável pela formação da consciência cívica das futuras gerações do nosso povo, valorizando as diferenças, em vez e hierarquizá-las.
Daí a necessidade de um ensino público laico e inclusivo. A concordata proposta pela Igreja Católica ofende a laicidade afirmada no artigo 19, I, da CF, e exige soberano repúdio do Estado brasileiro, que é laico e tem por objetivo promover uma sociedade livre, justa e solidária.


ROBERTO ARRIADA LOREA, 41, mestre e doutorando em antropologia social pela UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul), é juiz de direito no RS.

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