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TENDÊNCIAS/DEBATES
É correta a posição da Igreja Católica em relação ao aborto?
NÃO
Em defesa das liberdades laicas
ROBERTO ARRIADA LOREA
EM SOCIEDADES democráticas,
não é papel do Estado fomentar
doutrinas religiosas. Quanto ao
aborto, seguir ou não a orientação da
igreja é decisão que cada brasileira tomará ao enfrentar o dilema de interromper uma gravidez indesejada. A
laicidade do Estado impõe que a decisão seja acolhida pelo Ministério da
Saúde, garantindo o pré-natal ou o
acesso a um aborto legal e seguro.
O fato de vivermos em um Estado
laico é que garante às brasileiras o
acesso a informações sobre métodos
contraceptivos e relações sexuais
protegidas por preservativos. Essas
informações permitem que a mulher,
livre e conscientemente, tome suas
próprias decisões. Se uma mulher católica não quiser usar a pílula ou se
proteger, não está obrigada a fazê-lo.
O Estado laico respeita sua decisão,
mas ela não perde sua liberdade para
mudar de idéia quando quiser.
O debate sobre o aborto não produz
consenso. Como resultado, nas sociedades democráticas, as mulheres não
são obrigadas a abortar, pois gozam
de autonomia reprodutiva. Pelo mesmo fundamento, não são obrigadas a
levar a termo a gravidez indesejada.
A recente descriminalização do
aborto pela sociedade mexicana (88%
de católicos) traz bom ensinamento.
O fato de a maioria ser católica não
impede que se respeitem as minorias.
Ser católico não impede que se seja
laico, isto é, que se aceite que existem
pessoas que pensam diferente e que
também essas pessoas devem ter seus
direitos garantidos pelo Estado.
A reação adversa à proposta de descriminalização do aborto expõe nossa
cultura jurídica monárquica, tão afeiçoada à desigualdade. Governantes,
legisladores e juízes não sentem necessidade de descriminalizar o aborto
pois, ante uma gravidez indesejada,
independentemente do que pensem a
respeito, têm liberdade para acessar
um aborto legal (de fato) e seguro.
Compreender como opera essa lógica excludente contribui para enfrentar a questão. Tomemos o exemplo do ensino religioso na escola pública. Nós, das elites, não somos atingidos, pois pagamos escolas privadas.
Compramos a liberdade de escolher
se nossos filhos terão educação confessional ou laica. Se outras pessoas
não podem pagar por escolas laicas e
são obrigadas a enviar os filhos a escolas públicas confessionais, onde se
convertem em minorias estigmatizadas, é problema delas. Se suas consciências e crenças estão protegidas
como garantias fundamentais na
Constituição, é problema delas. Se a
dignidade dessas famílias é violada a
cada dia letivo, é problema delas.
Numa interpretação jurídica simplória, admite-se o ensino público religioso, aplicando-se uma regra (art.
210, parágrafo 1º, CF) que viola o
princípio da dignidade da pessoa humana, assegurado no primeiro artigo
da Constituição. Num paralelo entre
nosso ordenamento jurídico e o sistema solar, equivale a dar maior importância a Plutão do que ao próprio sol.
Como se forja uma cultura jurídica
tão insensível às liberdades do outro?
Impondo às minorias um tratamento
desigual desde os primeiros dias na
escola. Privilegiando um determinado pertencimento religioso em detrimento de outras crenças -ou da não-crença. Submetendo crianças e adolescentes a um tratamento desigual
durante gerações, formamos uma sociedade indiferente à desigualdade.
Quatro séculos de ditadura religiosa
debilitaram nossa capacidade de lutar
pelos direitos de quem pensa de forma diferente de nós.
O respeito à pluralidade é condição
para um enfrentamento da questão
do aborto que fortaleça a cidadania. O
Estado é o responsável pela formação
da consciência cívica das futuras gerações do nosso povo, valorizando as
diferenças, em vez e hierarquizá-las.
Daí a necessidade de um ensino público laico e inclusivo. A concordata
proposta pela Igreja Católica ofende a
laicidade afirmada no artigo 19, I, da
CF, e exige soberano repúdio do Estado brasileiro, que é laico e tem por objetivo promover uma sociedade livre,
justa e solidária.
ROBERTO ARRIADA LOREA, 41, mestre e doutorando
em antropologia social pela UFRGS (Universidade Federal
do Rio Grande do Sul), é juiz de direito no RS.
Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo. debates@uol.com.br
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