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TENDÊNCIAS/DEBATES
Políticas raciais: pelo debate franco e plural
EDWARD TELLES
Não podemos ignorar a raça na construção de
uma democracia inclusiva
no Brasil, posto que ela é critério da exclusão
NA SEMANA RETRASADA , a imprensa brasileira divulgou a
iniciativa de um conjunto de
intelectuais, ativistas e artistas que levou a Brasília um documento contra
os projetos de Lei das Cotas e do Estatuto da Igualdade Racial.
Na mesma data -29 de junho- em
que os representantes dessa iniciativa reuniam-se em Brasília com os
presidentes da Câmara dos Deputados e do Senado para a entrega formal
do documento, Demétrio Magnoli,
colunista desta Folha, acusou-me
publicamente em artigo de "pescar
um documento público da internet e
falsificar (seu) título".
Meu ato ilícito teria consistido, segundo o colunista, em denominar tal
documento como o "Manifesto da elite branca" e divulgá-lo, em seguida,
no boletim eletrônico da Brasa (Brazilian Studies Association).
Vamos aos fatos para evitar que o
debate sobre racismo no Brasil não fique comprometido por práticas intimidadoras que buscam deslegitimar
aqueles que, como eu, fundamentados em vários anos de pesquisa e análises empíricas rigorosas, defendem
políticas de cunho racial.
Com sua circulação na sociedade
brasileira, foi-me enviado, bem como
a outras pessoas, por e-mail, cópia de
tal manifesto. A linha dedicada ao assunto da mensagem tinha o título
"Manifesto da elite branca".
Sugeri aos coordenadores da Brasa,
professores Marshall Eakin e James
Green, que o fizessem circular no seu
site, dando, assim, acesso aos brasilianistas para o debate. Ciente do título repugnante -"Manifesto da elite
branca"- que constava como "assunto" no e-mail, mas fiel às fontes, mencionei no site da Brasa que o documento circulava na internet com tal
denominação.
Fiz aquilo que fazemos todos que
usamos a internet para veicular
idéias, debates e propostas. Coloquei
à disposição o documento, informando como estava sendo veiculado.
Sou acadêmico e, na qualidade de
estudioso das questões raciais comparativas, fui selecionado em 1996
pela Fundação Ford para ser assessor
de programas em seu escritório do
Rio, onde permaneci até 2000.
Porque trabalhei nessa fundação
na área de direitos humanos, Magnoli
me descreve como intelectual ativista
que defende os direitos das "minorias". Na minha visão, compartilhada
não apenas por colegas brasileiros
igualmente funcionários da Ford,
mas por inúmeros outros acadêmicos, atuantes e representantes de diversos setores da sociedade brasileira, sempre foi importante investir
nas demandas de grupos minoritários, sejam negros, mulheres, gays ou
indígenas, para fazer valer suas vozes
e suas lutas no processo democrático.
No meu livro "Race in Another
America: The Significance of Skin
Color in Brazil" (2004), que ganhou
da American Sociological Association
o prêmio de melhor livro em 2006,
explico com rigor por que sou a favor
de políticas que consideram a cor das
pessoas, para além daquelas que devem ser garantidas sem discriminação de qualquer tipo a todos os cidadãos de um país.
Os princípios da universalidade deveriam ser suficientes para regir nossas sociedades, porém não bastam
nas sociedades contemporâneas, pois
não conseguem desarmar a discriminação com base na cor da pele. Em
meus estudos, mostro que as taxas de
mobilidade social brasileiras revelam
que crianças pobres, porém brancas,
têm maior chance de chegar a posições de classe média do que crianças
igualmente pobres, mas negras.
A grande desigualdade racial no
Brasil se apóia em uma estrutura hiper-desigual e no fato de haver barreiras à entrada de negros na classe
média, o que tem produzido uma elite quase inteiramente branca.
A primeira causa deve ser tratada
com medidas universalistas capazes
de reduzir a desigualdade entre todos
os brasileiros, mas a segunda só pode
ser enfrentada com políticas compensatórias de cunho racial, especialmente aquelas que facilitam a entrada de negros nas universidades.
Não podemos ignorar a raça na
construção de uma democracia inclusiva, posto que ela é critério da exclusão. Dadas as especificidades brasileiras, políticas sociais que procuram
reduzir ou mesmo superar o enorme
fosso racial no Brasil têm de ser engenhosas e criativas. Julgar, porém, que
se possa ignorar a questão racial nos
seus desenhos seria ilusório.
Martin Luther King, defensor das
políticas universalistas, dizia que
contar apenas com elas "não é realista". Quando um homem se lança na
corrida com três séculos de atraso, é
praticamente impossível superar a
defasagem que o separa dos que largaram na frente. Milagres não existem. Vontade política, sim.
Tardava que o debate sobre a questão racial fosse enfrentado com coragem pela sociedade brasileira. Para
que se avance nele é essencial que ganhe as páginas desta Folha e de toda
a imprensa. Contudo, se avançar no
debate significa destruir quem pensa
diferente, falsear intenções e escamotear a verdade, então o risco de
sermos ineficazes e inócuos na nossa
ação é grande. Com isso, não estaremos ajudando a combater com efetividade o racismo.
EDWARD TELLES, 50, é professor do Departamento de
Sociologia e diretor do Programa sobre o Brasil da UCLA
(University of California Los Angeles).
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