São Paulo, segunda-feira, 12 de agosto de 2002

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Espelho, espelho meu

JOÃO HERRMANN NETO


Serra se viu no direito de implodir a ampla aliança partidária que, bem ou mal, dava sustentação a oito anos de governo


A presunção de José Serra passa a sufocar sua própria candidatura. No debate da TV Bandeirantes, Serra reforçou essa marca ao se intitular "candidato do governo José Serra". Um governo que não existe e, pior, um candidato com vergonha do governo a que serviu por oito anos, como foi rebatido na mesma noite.
Ou, na análise da jornalista Lúcia Hipólito, um candidato que quer apenas os bônus e nenhum ônus por ter sido governo.
Ainda, como disse Clóvis Rossi, na última quarta-feira, na Folha: o candidato de Fernando Henrique Cardoso sem ser o candidato do governo Fernando Henrique Cardoso "A quadratura do círculo", pág. A2). Toda vez que foi questionado sobre as ações do governo FHC, repetia que foi contra isso, isto e aquilo.
O único momento de ataque pessoal no debate foi protagonizado por Serra. Com um punhado de papéis nas mãos, ele acusou Ciro de "faltar com a verdade". Bradou que o ex-ministro da Fazenda nunca pagou salário mínimo equivalente a US$ 100, como disse ter feito no governo de Itamar Franco e como Ciro deseja repetir, sendo eleito ele presidente.
Ciro rebateu, dizendo não ver nenhuma razão para Serra rejeitar uma proposta "mínima e modesta" de salário mínimo equivalente a US$ 100. Mesmo no governo FHC o mínimo já chegou a US$ 110.
Para Ciro, é uma inominável covardia o que Serra insinua, ao dizer que esse piso irá estourar as finanças do país e quebrar a Previdência. Uma covardia com 13 milhões de aposentados, "nossos pais e avós", que ganham apenas um salário mínimo e não têm dinheiro para comprar duas caixas de remédio.
Renegar um salário mínimo equivalente em reais a US$ 100 é uma vergonha para o Brasil, que tem o seu piso salarial mais baixo que o de outras economias muito menores, como Bolívia e Paraguai. Ainda pior, quando se sabe que a concentração de renda no país é a quarta pior do mundo. Ao mesmo tempo em que o país irá pagar, somente neste ano, R$ 107 bilhões de amortização e juros ao exterior.
Ciro Gomes reconhece que a recente explosão do dólar -fato atípico desde 1994- exige uma compensação. "Ao câmbio de até R$ 2,50 é perfeitamente realizável", disse o candidato no "Jornal Nacional", na Rede Globo. Desqualificar e combater a proposta de Ciro Gomes para o salário mínimo, portanto, beira a perversidade.
A trombada em Ciro Gomes, contudo, provoca um efeito dominó ainda mais trágico. Ela traduz uma tentativa de José Serra de desqualificar toda a equipe econômica do governo Itamar Franco, o então ministro Fernando Henrique Cardoso, o então presidente do Banco Central, Pedro Malan, e tantos outros da equipe econômica.
Evidentemente, Serra não é ingênuo e avaliou essas consequências. Mas, como de outras vezes, isso não o interessou. O que vale é derrubar quem esteja à sua frente. Qualquer que seja o método.
Os propósitos pessoais de Serra devem prevalecer sobre qualquer lógica. Especialmente sobre a arte da política de conciliar interesses. Dizendo-se ter sido de esquerda, por ter se preparado obsessivamente para disputar a Presidência e, agora, por pertencer ao partido governista, o candidato se coloca acima de tudo e de todos. Ele vê nesta eleição o momento sagrado e único para a realização do destino que acredita lhe estar reservado.
Serra acha -ou melhor, tem certeza- que tudo pode para, enfim, conduzir o país aos desígnios retos que somente ele teria condições de alcançar.
Essa arrogância se expressa em todos os momentos. Por ela, Serra se viu no direito de implodir a ampla aliança partidária que, bem ou mal, dava sustentação a oito anos de governo. Espionou e destruiu candidaturas de outros partidos então aliados ao mesmo governo. Viu-se no direito de manipular e sufocar outras candidaturas também de partidos aliados.
Dentro de seu próprio partido, ainda se deu ao direito de impor sorrateiramente sua candidatura, ignorando o diálogo, o respeito aos colegas e a democracia interna. Iniciada a campanha, em seu "jingle", tem a ousadia de ameaçar: "Ou eu ou o caos; ou eu ou a argentinização".
São peças de um quebra-cabeça que, unidas, mostram a íntima personalidade de um candidato que se pergunta, repetidamente, como convencer o povo de que é o máximo.


João Herrmann Neto, deputado federal pelo PPS-SP, líder do partido na Câmara, é coordenador político da Frente Trabalhista.



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